Locais como a Terreira da Tribo, em Porto Alegre, e Grupo de Danças Orpheu, em São Leopoldo, reabriram, mas não em sua totalidade
Há um ano, um grande volume de chuvas caía sobre o solo gaúcho, dando início a uma catástrofe que ficaria marcada na história: a maior enchente do estado. Durante dias, muitos espaços de Porto Alegre e da Região Metropolitana ficaram embaixo da água. Com eles, ficou também submersa a Cultura. O patrimônio do Rio Grande do Sul foi atingido: instituições consolidadas, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Memorial do Rio Grande do Sul, a Usina do Gasômetro, Museu de Arte Contemporânea do RS, o Centro Municipal de Cultura e Lazer e a Casa de Cultura Mario Quintana, sofreram danos que levaram a meses com as portas fechadas. Agora, a maioria já está aberta e recebe as exposições da Bienal do Mercosul. O especial “(Re)Construção Cultural” visitou diversos desses locais e acompanhou de perto como cada um deles se reergueu.
Muitas mais, porém, foram as iniciativas independentes abaladas pela enchente. Em pesquisa desenvolvida pela PUCRS, 99,3% dos 1.357 entrevistados - atuantes na área cultural - tiveram suas atividades prejudicadas pela crise climática. Interrupção de projetos, perdas estruturais e cancelamento de eventos foram apenas alguns dos inúmeros desafios impostos ao setor. Um ano depois, o Correio do Povo revisita duas das tantas histórias que foram alteradas pelo curso da água, mas reconstruídas pelo curso do tempo.
Reconstruir para resistir
Em um dos pontos mais atingidos pela água em Porto Alegre, o quarto distrito abriga a Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nois Aqui Traveiz há 15 anos. Anteriormente localizados na Rua Santos Dumont, 1.186, hoje, a “Terreira” - como eles se denominam - precisou trocar de lugar. O novo endereço é na avenida da Pátria, 98, ainda no bairro São Geraldo.
Segundo a diretora do grupo de 47 anos, Tânia Farias, a enchente também afetou parte significativa do acervo do Museu da Cena, que seria inaugurado em 2024, com um acervo de figurinos da década de 1970 que marcaram o início do grupo. O mais difícil, no entanto, foi a enchente ter levado as pessoas que contribuiam com o local. “Tem o ‘Ói Nóis’ antes e um ‘Ói Nóis’ depois da enchente. Neste momento, estamos com a sua equipe de trabalho toda reduzida, porque muitas pessoas foram embora. As coisas ficaram muito mais difíceis para o grupo e, claro, muitas pessoas pensaram: ‘eu vou para lá onde posso fazer a minha história talvez com menos dificuldade do que aqui’.”
Além disso, acabou sendo levado pelas águas um espetáculo com teatro de rua que havia sido inaugurado pouco antes da inundação. Tânia avalia que não foi possível seguir com a montagem após a calamidade, já que não houve mais investimento. “Simplesmente, o espetáculo que tinha acabado de nascer, morreu. Assim como nasceu, se sepultou com a enchente e as pessoas que estavam no espetáculo também.”
A Tribo de Atuadores conta que recorreu aos editais como os da Lei Aldir Blanc e Paulo Gustavo para conseguirem manter a operação. Quanto ao prejuízo causado, o cálculo é de aproximadamente R$ 1 milhão, entre os mais de 600 figurinos afetados, estruturas cenográficas e instrumentos que precisaram ser comprados novamente.
Um ano após a enchente, a escola já retomou as atividades como pôde. “A escola já está a quase todo o vapor. Creio que chegamos em 75% [se comparado ao período pré-enchente].” As formações de atores, aulas e oficinas agora se adaptam ao novo espaço de trabalho, que mais enxuto que o anterior.
Recentemente, em 26 de abril, as portas da Terreira da Tribo se abriram para a sua atividade fim: o teatro. Pela primeira vez depois da enchente de 2024, o coletivo conseguiu apresentar espetáculos tão aguardados. A ideia se baseou na construção de um intercâmbio de atividades entre o Oi Nóis Aqui Traveiz e o grupo Inclassicáveis, de Santa Catarina. As apresentações seguem até 3 de maio, às 20h, com a montagem “Fluxo”, que atravessa acontecimentos recentes da história das escolas públicas brasileiras e os rearranjos no mundo do trabalho.
Ainda há, em breve, a possibilidade de mais uma troca de endereço para um espaço definitivo. Em maio, o fatídico mês que insiste em ficar na memória dos gaúchos, pode ser o mês em que a “Terreira” consiga sonhar novamente em ter uma “espécie de cidade das artes”, que reúna artes visuais, música, dança, cinema e teatro e “reflita as referências das artes do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre”.
Quando a dança perdeu o compasso
O número 30 da Rua Independência, em São Leopoldo, abriga há anos os sons e os corpos daqueles que se dedicam à arte da dança. Na sede do Grupo de Danças Orpheu, a água chegou ao tablado em 28 de abril de 2024 e marcou de lama as paredes e a história da instituição, deixando muito para ser reconstruído.
Fundada em 1986, a instituição é dirigida por Marialva da Silva Machado desde seus primeiros momentos. Com formação em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Marialva atua também como professora de Ballet Clássico, acumulando 49 anos de experiências, cursos e competições. A trajetória do Grupo de Danças Orpheu e sua relevância à cultura leopoldense é refletida no reconhecimento em festivais nacionais e internacionais, no sucesso de seus espetáculos e no engajamento dos próprios alunos.
Em decorrência da enchente, o estúdio que cultivou a paixão pela dança em tantas pessoas perdeu o ritmo, mantendo suas portas fechadas durante três meses. Daquela estrutura, quase tudo foi perdido: entre telhado, móveis e documentos, a água carregou também os quadros que contavam a história e as coreografias que traçaram o caminho do Orpheu.
Além da sobrecarga emocional e das perdas materiais, os meses de hiato levaram consigo mais de 20 alunos que não retornaram. Os prejuízos da pausa nas atividades foram intensificados pelo cancelamento de um dos espetáculos anuais que contribui com a receita da escola. O Grupo de Danças Orpheu viveu, no pós-enchente, um de seus momentos mais difíceis e de mais trabalho.
“Os desafios são diários, mas fomos buscar forças primeiro em Deus. Depois, em reerguer a Escola através de luta, união e muito amor pela Arte”, afirma Marialva. Depois de maio de 2024, quando a água baixou, as escolas de dança do Rio Grande do Sul afetadas trabalharam em conjunto para que os corpos dançantes retomassem seu espaço em tablados que não mais existiam.
Com o apoio da comunidade, garra e amor ao que faz, Marialva da Silva Machado reergueu seu estúdio. Doações, aulas solidárias e rifas foram alguns dos auxílios essenciais para que, em 1° de agosto de 2024, o Grupo de Danças Orpheu reabrisse suas portas e a dança pulsasse novamente em São Leopoldo.
Correio do Povo
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