domingo, 4 de maio de 2025

A enchente contada por quem a viveu

 Moradores de bairros de Porto Alegre relatam as experiências de quando as águas invadiram Porto Alegre

Mesmo tendo sofrido com enchente em Porto Alegre, o casal José Antônio Pereira da Silva e Maria Alice Neves Ramos decidiu não deixar a região da Ilha Grande dos Marinheiros | Foto: Ricardo Giusti


Entre o início de maio e meados de junho, a Capital gaúcha viveu um período marcado pela dor e pela angústia, mas também repleto de solidariedade e união. Em muitos locais de Porto Alegre, a enchente histórica começou naqueles primeiros dias de maio de 2024 e segue até hoje, seja nos danos físicos ou nos traumas emocionais que restam guardados na memória de quem presenciou, voluntariou-se, viveu ou sobreviveu à tragédia.

Dependendo da região de Porto Alegre, cada morador tem um relato de quando a cheia iniciou. Para quem estava no Centro Histórico, a água começou a subir na sexta-feira, dia 3 de maio. Para quem mora na Zona Norte, o desastre chegou no sábado, dia 4. Nas ilhas do Guaíba, moradores já estavam desalojados desde a quarta-feira, dia 1º de maio, enquanto o ápice da enchente ocorreu no domingo, dia 5 de maio, quando o Guaíba atingiu 5,37 metros, de acordo com o Serviço Geológico do Brasil (SGB), superando em 41 centímetros a cheia de 1941.

A chuva, no entanto, começou alguns dias antes, na tarde do sábado, dia 27 de abril. E seguiu por dias. Não apenas em Porto Alegre, mas também em cidades do interior do Rio Grande do Sul. No domingo, algumas delas já sofriam com os impactos de inundações repentinas e deslizamentos de terra. De acordo com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), entre o início de abril de 2024 e o pico da cheia, o RS teve uma chuva acumulada de 652 milímetros, ou seja, 60 milímetros a mais que no mesmo período anterior à cheia histórica de 1941.

Ao longo dos dias subsequentes, o dilúvio devastou o Vale do Taquari e seguiu até a região Metropolitana. A linha do tempo a seguir é um retrato falado dos eventos que os moradores de diversas regiões de Porto Alegre vivenciaram entre os dias 1º e 6 de maio. Salvamento por barco, voluntariado em resgates e até famílias morando em catamarã são apenas alguns dos fragmentos de uma infinidade de histórias que ficarão para sempre marcadas na vida dos gaúchos.

DIA 1º E 2 DE MAIO – ÁGUA A CAMINHO

Dois dias antes de invadir o Centro Histórico, a enchente já causava preocupações nos moradores de áreas fora da cobertura do sistema de proteção contra cheias da Capital. Nas ilhas, veículos da Defesa Civil Municipal circulavam para informar à população sobre mais um evento climático com potenciais transtornos para a região – o terceiro desde setembro de 2023. Junto a eles, figuras conhecidas em cada uma das ilhas ajudavam nos avisos.

Entre eles estava o pescador William Viega, o Maninho, morador da Ilha da Pintada. Ele conta que, após ajudar na disseminação do alerta, precisou sair de casa às pressas, pois a água já estava se aproximando de onde morava, na avenida Presidente Vargas.

“Começamos a tirar as pessoas daqui e levar lá para o Centro da Ilha. Fiz igual à maioria das pessoas: levantei tudo com paletes, mais alto que em 2015. Mas passou igual. Ninguém esperava aquilo”, relembrou.

William Viega, 58 anos, morador da Ilha da Pintada William Viega, 58 anos, morador da Ilha da Pintada | Foto: Ricardo Giusti

Desde este momento, mesmo longe de casa, Maninho colocou seu barco de pesca à disposição e iniciou os trabalhos de resgate, inicialmente de pessoas, mas também de animais, no bairro Arquipélago e também em Eldorado do Sul.

“Perdi o senso de dia e horário. Foram praticamente 30 dias diretos atuando nos resgates. Acredito que, só em animais, foram mais de 1,2 mil salvamentos no meu barco”, completou.

A percepção de que a água estava avançando sobre a região também foi sentida em outros bairros de Porto Alegre. Na Cidade Baixa, a advogada e síndica do prédio onde mora, na rua Baronesa do Gravataí, Sabrina Dutra, deixou seus dois cães na casa de sua mãe, já temendo alagamentos na região.

“Começou a acumular água na rua em alguns bairros perto daqui, como no Praia de Belas, e já ficamos em alerta. Só foi chegar dias depois, mas desde então, eu e meus vizinhos não conseguíamos mais dormir direito”, lembrou.

Já na véspera do início da inundação no Centro Histórico, em Porto Alegre, a rotina ainda era de apreensão e incertezas. Moradores da Ilha Grande dos Marinheiros, o aposentado José Antônio Pereira da Silva e a esposa Maria Alice Neves Ramos passaram o dia acompanhando o nível da inundação na rua Nossa Senhora Aparecida, que já se aproximava do acesso da garagem de casa. Incrédulos do que estava por vir, decidiram seguir no local. Mas tudo mudou poucas horas depois.

DIA 3 DE MAIO – DILÚVIO CHEGA À CAPITAL

Era por volta das 1h30min quando José Antônio recebe a ligação do genro, que também mora na ilha, convocando o casal para sair urgentemente da casa. A residência, mesmo que mais alta em comparação com o nível da rua, já estava alagada. Ao sair da cama e tentar pisar no chão, sentiu uma lâmina de água.

“Logo veio meu genro de barco aqui nos buscar. Não demorou muito e a água já tinha atingido quase 1 metro de altura dentro de casa. Quando saímos daqui, parecia uma cena de terror. A água vinha de uma maneira que era como se eu estivesse dentro do mar, com muita correnteza e ondas cada vez maiores”, falou o aposentado.

Dali, ele, a esposa e a cachorrinha foram para a casa do genro que, segundo eles, é uma das mais altas da ilha.

O cenário da madrugada no bairro Arquipélago logo chegaria a outras regiões de Porto Alegre. No Guarujá e em Ipanema, o Guaíba começou a transbordar por volta das 5h. Pouco mais de uma hora depois, a água já passava pelas comportas do Muro da Mauá e encobria a Orla do Guaíba. No Centro Histórico, um dos primeiros locais a alagar foi a Estação Rodoviária, principalmente nas bancas que ficam no subsolo.

Era cerca de 6h30min quando o empresário argentino Fernando Bugalo, proprietário de duas lojas na rodoviária, foi acordado por seus funcionários informando que os estabelecimentos estavam sendo inundados. O relato dos colaboradores era de que “parecia um tsunami vindo dos bueiros”. Assim que ficou sabendo, tentou ir até o local, mas já não era mais possível chegar na estação.

“Ainda no dia 3, a água subiu muito rápido e já não conseguimos entrar. Avançou tanto que não deu tempo de fazer nada a não ser fechar e sair correndo”, recordou o empresário.

Fernando Bugalo, 70 anos, proprietário de duas lojas na rodoviária Fernando Bugalo, 70 anos, proprietário de duas lojas na rodoviária | Foto: Ricardo Giusti

Nas horas seguintes, a água seguiu avançando, seguindo pela avenida Júlio de Castilhos em direção ao Mercado Público. A inundação foi percebida por diversas pessoas que trabalham na região, entre elas, o empresário Giácomo Severino Neto, que possui uma ótica na rua Voluntários da Pátria.

“Durante a manhã, quando a água começou a subir na rua Vigário José Inácio, o pessoal começou a gritar e alertar. Daqui, olhamos e pensamos que não ia chegar. Talvez entrasse um pouco só”, relatou o empresário, que continuou atendendo normalmente até o início da tarde. Neste período, a água seguiu avançando no Centro Histórico, obrigando a remoção de alguns moradores com barcos, além do fechamento do perímetro do bairro e do desligamento da energia elétrica.

Ao ver como a situação piorava a cada instante, com a água já submergindo a calçada em frente a sua loja, o empresário decidiu, por volta das 15h, fechar o estabelecimento comercial.

“Cada vez a catástrofe ia ficando pior, com a cheia aumentando. Deixamos tudo levantado cerca de meio metro, pois era o que a gente imaginava que ia acontecer. Então fechamos e fomos embora. Mas chegou em um ponto que a água atingiu 1,5 metro dentro da loja”, completou Giácomo, que comprou um macacão de pesca, também conhecido como jardineira, e retornou alguns dias depois para ver como estava o estabelecimento.

Giacomo Severino Neto, 67 anos, empresário com relojoaria do centro de POA Giacomo Severino Neto, 67 anos, empresário com relojoaria do centro de POA | Foto: Ricardo Giusti

Para dentro da loja, ele só voltou no final de maio.

Outros bairros também apresentaram transtornos por conta do avanço da água que vinha de bueiros. No Menino Deus, a aposentada Solange Lima lembra que estava em um salão de beleza quando recebeu no celular a informação do mapa do IPH da Ufrgs de que a rua onde mora seria atingida pela cheia. Foi convencida pelos filhos a se preparar para uma possível evacuação.

“Eu arrumei uma mala, peguei documentos e coloquei algumas coisas importantes para a parte alta. Fiquei observando pela janela a água avançar. Por volta das 16h, começou a inundar a rua e pedi para o meu genro me buscar. A água já estava na canela.”

Tiago Schabbach e sua mãe, Solange Lima, mostram a altura que a água chegou na sua residência Tiago Schabbach e sua mãe, Solange Lima, mostram a altura que a água chegou na sua residência | Foto: Ricardo Giusti

Ela foi levada para a casa da filha, também no bairro Menino Deus. O outro filho dela, o empresário Tiago Schabbach, ao receber o mesmo mapa do IPH, foi até a casa onde mora com os pais para retirar o veículo da família da garagem e levar para um local seguro. Escoteiro do mar e com grande experiência em navegação, ele começou na sexta-feira a organizar, junto a um grupo de amigos, os equipamentos necessários para uma possível ajuda em resgates na região Metropolitana.

Se para alguns bairros o dia já era marcado pelo desespero de evacuar a casa, no bairro Sarandi, a família do motorista de ônibus Cláudio Mendonça Teixeira celebrava a conclusão da instalação da tão sonhada piscina da casa, cerca de duas quadras do dique.

Com pulos, mergulhos e uma água limpa, a estrutura foi a alegria da casa na tarde daquele fatídico dia. Mal sabia a família que, no dia seguinte, a água os obrigaria a deixarem o local. O drama, para eles, começou ainda na tarde, quando o dique extravasou.

Ainda na sexta-feira, outro marco da cheia em Porto Alegre foi o rompimento da comporta 14, localizada nas proximidades do túnel metroviário, no entroncamento das avenidas Castelo Branco, Sertório e rua Voluntários da Pátria. Com isso, a água começou a avançar também na Zona Norte e no 4º Distrito. Por ser o início de um novo mês, a aposentada Vânia Lúcia Fabian, moradora do Humaitá, havia saído de casa por volta das 15h para pagar as contas de consumo.

Ao chegar nas agências bancárias e lotéricas da região da avenida Sertório, estranhou ver parte dos estabelecimentos já fechados. Ao fundo, percebeu a movimentação dos agentes da Empresa Pública de Transporte e Circulação de Porto Alegre (EPTC) alertando sobre o rompimento da comporta e o avanço da cheia. “Eles falavam para não ir para lá (Sertório) pois a água já estava avançando. Ao voltar para casa caminhando vi que, poucos minutos depois, o alagamento já estava na Farrapos”, afirmou.

No caminho para a casa, que fica nos arredores da Arena do Grêmio, Vânia ainda passou no mercado para comprar alguns alimentos. Como já havia alguns pontos de alagamento no bairro Humaitá, precisou voltar pela avenida A.J. Renner. “Foi quando me avisaram pela primeira vez que era para eu arrumar minhas coisas e ir para um abrigo. Mas, no final da tarde, fui até outro ponto do bairro para ajudar algumas famílias a saírem de casa. Já tinha água acima do meu tornozelo”, disse.

A situação só viria a piorar. Ainda durante o final da tarde, com ajuda de tijolos e cadeiras, ela ergueu alguns móveis dentro de casa, mesmo com a água ainda distante de onde mora. Por volta das 21h, Vânia conta que decidiu tentar dormir. Poucas horas depois, por volta das 23h30min, ela acordou repentinamente. A água já havia invadido sua casa e, naquele momento, estava cerca de 20 centímetros acima do piso do quarto.

“Fui colocar a mão no chão e já tinha água. Meus calçados estavam boiando. Peguei o que deu e levei para o segundo andar da casa. Não consegui dormir mais depois disso. Apavorei-me com a situação, mas não quis ligar para ninguém”, completou a idosa.

Entretanto, a hora de evacuar o bairro não demoraria a chegar.

DIA 4 DE MAIO – PORTO ALEGRE EMBAIXO D’ÁGUA

Depois de passar a madrugada acordada e ilhada no segundo andar da casa, Vânia Lúcia Fabian decide sair de qualquer maneira do bairro Humaitá. Por volta das 5h, começa a arrumar uma sacola com documentos, roupas e carregador do celular. Antes, liga para uma filha que mora em São Paulo. Além dela, conversou com a neta, deu a ideia de ir para a Arena do Grêmio ou para as rodovias federais.

“Quando eu desci a escada para ir embora, a água já estava acima do meu joelho. Fiquei com muito medo de tomar choque por conta da fiação, mas saí costeando as paredes das casas. Pela rua estava ainda mais fundo, por isso fui pela calçada, mas fui com muita calma, arrastando os pés, para tentar sentir se não tinha uma pedra ou buraco no caminho. A água me empurrava para os lados. Muitos outros moradores também estavam fazendo mesmo. Tinha até pessoas saindo em cima de colchões e em caixa d’água”, recordou.

Vânia Lúcia Fabian Vânia Lúcia Fabian | Foto: Ricardo Giusti

Quando ela chegou nas proximidades da alça de acesso da BR 448, a água já atingia seu tronco e também encobria as muretas da rodovia. “Não tinha sequer como tentar pular. Tive que fazer toda a volta para chegar na rodovia. Alguns moradores que já haviam saído voltaram para me ajudar a atravessar. Cheguei no viaduto já era quase 7h e ficamos ali por mais um tempo”, afirmou.

Mais algumas horas se passaram até a chegada do veículo que retiraria ela e outros moradores daquela situação. “Eu liguei para alguns conhecidos da torcida do Grêmio que frequentam a região em dia de jogo e, logo depois, chegaram três caminhões do Exército. Eram por volta das 10h quando saímos dali. E a água não parava de subir”, falou Vânia.

Entretanto, o drama não terminou ali. Ela lembra que o trajeto entre a BR 448 e o abrigo no Grêmio Náutico União demorou quase 4h.

“Ficamos quase uma hora fazendo volta na Arena para tentar sair pela A.J. Renner. O caminhão ia recolhendo gente nos viadutos. Era gente, cachorro, gato, gaiola de passarinho. Foi um desespero. As pessoas não falavam nada, só pediam socorro.”

Ainda na madrugada de sábado, aflito com as informações sobre a possível cheia, o morador do Sarandi, Cláudio Teixeira, conta que teve dificuldades para dormir e que, por volta das 8h, decidiu ir até o mercado onde trabalhava na época. A esposa dele, Grécia Teixeira, decidiu ficar em casa com os dois filhos do casal e percebeu a passagem de agentes de segurança ordenando que os moradores evacuassem a região.

Ao voltar para casa, Cláudio e Grécia começaram a subir com os móveis para o segundo andar da casa e perceberam o avanço da água na rua.

“Foi tudo muito rápido. Deixamos só algumas coisas mais pesadas no andar de baixo. Minha esposa e meus filhos conseguiram sair de caminhonete por volta das 10h de sábado. Eu decidi ficar, pois não acreditei que a água ia subir tanto”, afirmou o motorista.

Além de Cláudio, um irmão ficou no segundo andar da casa o acompanhando, além da cadela da família e um periquito.

“Perto do meio dia, eu voltei até o mercado, onde tinha deixado o carro, para levantar mais algumas coisas e levar o veículo até as proximidades da avenida Assis Brasil. Quando voltei para casa, a água já estava no peito. Não tinha mais como sair”, complementou.

Cláudio Mendonça Teixeira, 44 anos Cláudio Mendonça Teixeira, 44 anos | Foto: Ricardo Giusti

O caos estava cada vez mais tomando conta. Naquele momento, o ponto mais crítico da cidade eram os bairros Humaitá e Sarandi, de acordo com o prefeito Sebastião Melo. A avenida Farrapos havia se tornado um correr humanitário, com milhares de moradores utilizando a via para o êxodo da região. Os resgates se intensificaram, com a ajuda inclusive de blindados do Exército no Sarandi e no Humaitá. Ao longo do dia, o Guaíba atingiu o nível de 5,22 metros.

Mas o drama não atingia apenas a Zona Norte. No bairro Cidade Baixa, em meio ao avanço das inundações, a advogada e síndica Sabrina Dutra, junto a outros vizinhos, começaram a convencer outros moradores do prédio, principalmente pessoas idosas, a buscar refúgio na casa de familiares em outras regiões da Capital. “Estávamos desde quarta-feira só observando, mas a água chegou no sábado. Ela já estava atingindo as calçadas da rua. Tanto no sábado como no domingo, a situação ficou igual e seguíamos de vigília aqui na frente do prédio”, lembrou. Além dela, outros poucos moradores decidiram ficar no local para cuidar dos imóveis que haviam sido evacuados.

DIA 5 DE MAIO – O DRAMA CONTINUA

As primeiras horas de domingo mal haviam passado quando a situação no bairro Sarandi piorou. A casa na qual a sogra residia, no mesmo terreno, já estava submersa pela água, com apenas parte do telhado para fora. Para Cláudio Teixeira, só restava buscar uma forma de ser resgatado junto de seu irmão e os animais da família. Foi quando, por volta da 1h, eles viram uma lancha do Corpo de Bombeiros Militares do RS (CBMRS) passar pelo local. “Mas a grade do portão ainda estava para fora da água e eles falavam que o barco não passaria por ali. A única forma seria se nadássemos até lá, mas eu não sei nadar. Então o rapaz dos bombeiros falou para esperarmos um pouco mais, até a água subir o suficiente. Foi quando conseguimos sair daqui, de barco”, relatou.

Para isso, Cláudio, o irmão e a cadela Fiona precisaram pular a sacada do segundo andar da casa e atravessar o telhado do imóvel onde morava a sogra até chegar na embarcação.

“Fomos caminhando, com muito cuidado para não quebrar nada e cair. Depois de atravessar, ainda demoramos mais uma meia hora até conseguir subir no barco, pois não tinha firmeza suficiente e tinha muitos fios dos postes para esquivar. Foi quando subi no barco e andamos pelo bairro que senti a proporção do estrago.”

Eles foram levados até as proximidades da avenida Assis Brasil, onde ocorriam os desembarques dos resgates. Após, encontrou-se com o restante da família, que estava no apartamento de um familiar, também no Sarandi. Antes de sair, Cláudio deixou o periquito Kiko na gaiola onde vive em cima de uma mesa no segundo andar da casa. Achando que a situação seria resolvida em breve, Cláudio deixou alimento suficiente para alguns dias para o pássaro. Eles só voltaram para casa no início de junho.

Ainda na madrugada do domingo dia 5 de maio, o empresário e morador do bairro Menino Deus Tiago Schabbach, recebe o chamado das forças de segurança convocando seu grupo de escoteiros do mar para ajudar nos resgates, principalmente no bairro Humaitá e em Canoas. A partir deste momento, ele conta ter perdido a noção de tempo, tendo atuado incessantemente nos salvamentos.

Pelos cálculos do grupo, os barcos colocados à disposição nos próximos 20 dias ajudaram no resgate de mais de 2 mil pessoas, além de animais e pertences pessoais.

“Estávamos com três barcos grandes. Em Canoas, nossa embarcação era uma das mais fortes, pois acessava lugares que os outros barcos menores não entravam. Então ela ficou do início ao fim resgatando. Eu já não sabia se era dia ou noite”, lembrou.

A atuação voluntária em resgates também movimentou os dias da enchente para o pescador da Ilha da Pintada William Viega, o Maninho. Assim como Schabbach, ele foi de vítima a herói durante a catástrofe, levando moradores e animais até a Orla do Guaíba. No domingo, uma das poucas memórias que ele tem é de passar por perto de onde ficava sua casa e tentar virar o rosto para não assistir a cena de destruição do seu antigo lar.

“Sobrou muito pouco da minha casa. Um fogão a lenha, a peça onde ficava o banheiro, uma máquina fotográfica digital e um edredom do Grêmio. Mas as coisas a gente adquire de novo. Naquele momento, só pensava em partir para os resgates de pessoas e animais e abastecer quem ficava com comida, tanto nas ilhas como em Eldorado do Sul”, apontou.

William Viega William Viega | Foto: Ricardo Giusti

Já na Ilha Grande dos Marinheiros, a segurança de estar em uma das casas mais altas da região já não era mais perceptível para o aposentado José Antônio Pereira da Silva e para sua família, que estava abrigada na casa do genro. Com o aumento do nível da água, o grupo precisou rumar para outro lugar. Foi então que, com a autorização da CatSul, empresa na qual o genro trabalhava, eles buscaram abrigo em um catamarã que estava na oficina da empresa, que fica na ilha.

Na embarcação, eles ficaram cerca de 20 dias, junto com outras pessoas da família.

“Ficamos só dois dias na casa do meu genro. Não deu para ficar mais. Isso que a casa era alta. Mas como o catamarã é flutuante, ficamos mais seguros ali. E aí que fomos ter uma noção do que estava acontecendo. De pessoas morrendo, de família em casa boiando tentando ser resgatada de helicópteros e não conseguindo”, disse.

Entretanto, as cenas vistas por eles na embarcação não saem da memória.

“Os animais eram arrastados pela correnteza aqui na rua, na nossa frente. Búfalos, vaca, cavalo e mais. Passavam urrando, gemendo. Era um horror. Parecia filme de terror. E no catamarã, nós éramos em 15 pessoas. Eu e minha esposa atuávamos como cozinheiros e faxineiros. Como é um barco bem equipado, tinha tudo: cozinha, banheiro, espaço para dormir”, recordou o aposentado.

Ainda no domingo, o empresário Fernando Bugalo tentou chegar na Estação Rodoviária para ver a situação dos seus empreendimentos. Entretanto, a água impediu que ele chegasse na região.

“Lembro de tentar vir de carro para ver, mas tive que estacionar depois da avenida Farrapos. Só conseguir chegar até perto dos hotéis. Mas era muita água. Outros donos de empresas aqui me mandavam vídeos da rodoviária com água até o teto. A situação foi tão terrível que a minha memória se tornou seletiva. Tento, pouco a pouco, me recordar. Mas era tudo tão pavoroso e apocalíptico”, lamentou.

Fernando Bugalo, empresário Fernando Bugalo, empresário | Foto: Ricardo Giusti

Além dele, o empresário Giácomo Severino Neto também tentou chegar até a sua loja no domingo. Ele havia comprado um macacão de pesca para ir até o local. “A água estava com cerca de 1,5 metro dentro da ótica. Eu vim olhar e tentei chegar até onde podia. A água dava no meu peito”, relembrou.

Ao ver que nada podia ser feito na loja, Giácomo decidiu então ajudar no acolhimento das pessoas resgatadas que chegavam até a Orla do Guaíba.

“Eu vim aqui olhar a loja, mas fui lá para o Gasômetro ajudar como voluntário. Minha função era receber quem chegava com alimentação ou então levava para algum posto médico. Mas era esse primeiro momento em que as pessoas desembarcavam”, completou.

Ele se recorda da sensação de ambiguidade vivida durante os atendimentos como voluntário. De um lado, a tristeza de quem havia perdido tudo na enchente. Do outro, a união das pessoas que não mediam esforços para ajudar o próximo.

“Vi muita coisa feia. Pessoas em situação difícil. Cachorro chegando no colo. Foi muito feio, mas foi emotivo também, principalmente ao ver profissionais se colocando à disposição para salvar vidas. Foi um momento de união do nosso povo”, salientou.

DIA 6 DE MAIO – ALAGAMENTOS REPENTINOS

Com extravasamento de dique e rompimento de comporta na Zona Norte, a cheia avançou sobre bairros da região Central de Porto Alegre após a falta de luz em casas de bomba. Depois de ficar noites sem dormir para monitorar o avanço da água, a advogada e síndica na rua Baronesa do Gravataí, Sabrina Dutra, viu seu apartamento ser inundado através da canalização subterrânea. Os transtornos se intensificaram por volta das 7h de segunda-feira, dia 6 de maio.

“No domingo, a água já tinha atingido os pátios por dentro. Mas a cena que mais dói para mim é ver a água brotando do chão do meu apartamento. Eu comecei a olhar para todos os lados e, de onde era possível, vinha água. Em cerca de cinco minutos, já estava tudo alagado. Fiquei na função de chamar outros moradores e desligar o disjuntor do prédio. Quando vi, a água já estava na minha cintura.”

Com o aumento da cheia, ela chegou a buscar refúgio nos andares superiores do prédio, mas, com o não funcionamento da casa de bombas da região, a única alternativa foi evacuar o local. Por volta das 11h, ela e outros moradores mais jovens finalizaram a remoção, em barcos, de pessoas com mobilidade reduzida e animais, antes de partir em retirada caminhando.

“A água subiu repentinamente. No início da manhã tinha uma lâmina de água. Horas depois já estava na cintura. Como não tinha bote para todos, fomos dando prioridade para quem tinha animais e para os idosos. Eu saí do jeito que deu. Não tive tempo de entrar em desespero, pois tinha que resolver a minha situação e a do prédio”, completou.

O alagamento repentino também fez a aposentada Solange Lima, moradora do Menino Deus, sair às pressas da casa da filha, onde estava desde o dia 3. Ao ver a água se aproximar, eles arrumaram as coisas e foram em direção ao Litoral Norte, atendendo o pedido feito um dia antes pelo prefeito Melo. “Na segunda-feira, a água chegou no portão do prédio. Então, fomos para a praia e ficamos praticamente um mês lá. Vim brevemente no final de maio e fiquei apavorada com o que vi.”

DEPOIS DO DIA 7 – RESGATES E VOLUNTARIADO

Passados os dias de pico da enchente histórica, o relato de quem presenciou a tragédia é similar: dias e dias buscando refúgio em entidades sociais ou casas de familiares, além de ajudar com trabalho nos resgates e abrigos. Um destes casos é de Vânia Fabian, moradora do Humaitá. Vítima do desastre, ela decide não apenas ser atendida nos espaços onde recebia ajuda, mas também atuar como voluntária.

Passando por espaços como o Grêmio Náutico União e Jardim Botânico, em Porto Alegre, e pela Ulbra, em Canoas, ela ajudou na limpeza de banheiros, distribuição de alimentos e mais. “Quando eu chegava nos abrigos, parecia um campo de concentração. Aqueles colchões enfileirados, um do lado do outro.” Entre as diversas funções, lembra de ter recolhido lixo, varrido o piso, dividido o papel higiênico em porções para todos e distribuído marmitas.

De abrigo em abrigo, Vânia conta que trabalhando até o final de junho.

“Em um dos lugares que fui, onde ficavam umas 600 pessoas em um pavilhão, ajudei na distribuição dos alimentos para os acolhidos, mas comecei a cair. Era gente usando droga, abusos. Lá eu perdi meu senso de humor. Acabei indo para outro local, mas seguia ajudando. Eu saía de dia para fazer voluntariado e só voltava de noite para dormir.”

Outra situação que ainda perdurou dias foi a do periquito Kiko, da família do morador do bairro Sarandi Cláudio Teixeira. Quando ele saiu, no domingo dia 5, ele deixou o pássaro no segundo andar da casa com alimento suficiente para alguns dias, mas não imaginava que a cheia se estenderia tanto. Com o fim das operações de resgate de barco, ele pediu ajuda para um homem com um jet ski, para que fosse até a sua casa e verificasse se o animal ainda estava vivo.

“Achei que ele nem ia achar minha casa para poder pegar o passarinho. Pensei até que o Kiko havia morrido de fome. Mas quando vi aquela cena do rapaz caminhando com a gaiola na mão, me emocionei. Ele estava todo sujo, mas ficou cantando como se estivesse me procurando”, contou Cláudio, que tem o animal na família há mais de 5 anos.

APÓS A CHEIA – LIDANDO COM OS TRAUMAS

Em alguns lugares, a inundação secou de forma mais rápida. Em outros, a água demorou mais para tornar a região novamente habitável. Apesar disso, passado um ano da tragédia, as marcas físicas e invisíveis seguem presentes nos lares e nas memórias dos moradores de Porto Alegre. A vida tem voltado à normalidade – mesmo nunca mais sendo a mesma – para muitos deles. Os empresários do Centro Histórico Fernando Bugalo e Giácomo Severino Neto, apesar de terem gastos consideráveis, conseguiram recuperar de seus espaços de trabalho.

Já nas casas dos atingidos, a situação varia bastante. Moradores do bairro Sarandi, Cláudio e Grécia Teixeira recuperaram o primeiro andar da casa. Entretanto, o imóvel que estava sem uso na parte da frente do terreno ainda carrega as marcas da cheia, com escombros de madeira, móveis e equipamentos eletrônicos destruídos.

“Antes, nós fazíamos planos. Agora, não fazemos mais. Até porque não temos dinheiro para mexer aqui. O que conseguimos foi para a nossa casa”, reforçou Cláudio.

Cláudio Mendonça Teixeira, Grécia Godinho Pinto Teixeira e o filho Bernardo Cláudio Mendonça Teixeira, Grécia Godinho Pinto Teixeira e o filho Bernardo | Foto: Ricardo Giusti

Na Cidade Baixa, a advogada Sabrina Dutra conta que só conseguiu voltar a viver no seu apartamento térreo em novembro de 2024. Entretanto, ainda não se sente confortável no lugar que chamava de casa.

“Meu lar foi embora na enchente. A minha casa já não é mais a minha casa. Eu só moro aqui agora. Não acho que vai acontecer de novo, mas não adianta, o trauma fica. Eu gosto muito daqui, mas, ao mesmo tempo, eu não me sinto mais à vontade na minha casa”, lamentou.

Sabrina Dutra Sabrina Dutra | Foto: Ricardo Giusti

No bairro Arquipélago, a escolha sobre viver ou não na região varia de acordo com o objetivo de vida de cada família. O pescador William Viega, o Maninho, mora agora de aluguel social em outra casa na Ilha da Pintada. Entretanto, está aguardando a sua vez no programa Compra Assistida para ir embora de Porto Alegre. “Depois a gente vê para onde vai. Só quero escolher um lugar que dê para pescar, talvez no Litoral Norte, perto das lagoas”, sonhou o pescador.

Já na Ilha Grande dos Marinheiros, depois de passarem dias sobrevivendo em um catamarã, a família do aposentado José Antônio Pereira da Silva, que reside há mais de 30 anos no local, decidiu não deixar a região. Para isso, ele terminou de construir em abril um anexo da casa. Trata-se de uma construção de madeira com cerca de 5 metros de altura. O local, ainda sem mobiliário, servirá como refúgio em caso de novas cheias, segundo o morador.

“Minha esposa nasceu aqui, nossos filhos nasceram aqui, netos também. A família toda é daqui. A nossa casa para uso diário é a de baixo, que já utilizamos. Só deu para colocar o essencial nela desde então. Aqui em cima é o nosso plano B. Vamos usar em caso de emergência. A enchente mudou a minha concepção de vida e o sobre o que é essencial. Foi uma lição para vermos que não somos nada. Estamos apenas ocupando estes espaços, mas a natureza que é dona de tudo.”

José Antônio Pereira da Silva e Maria Alice Neves Ramos José Antônio Pereira da Silva e Maria Alice Neves Ramos | Foto: Ricardo Giusti

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Correio do Povo

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