Acordo UE–Mercosul: Um fio de esperança

 Por Jurandir Soares

Há mais de duas décadas negociado, o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul voltou a expor, mais uma vez, as profundas fissuras que atravessam tanto o bloco sul-americano quanto o europeu. O recente anúncio da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, de que as negociações serão retomadas em 12 de janeiro reacendeu expectativas, mas também evidenciou o ceticismo de quem acompanha um processo marcado por avanços tímidos, recuos políticos e interesses econômicos conflitantes. O desacerto atual mostra que, apesar do discurso diplomático, o caminho até a assinatura definitiva permanece tortuoso.


IMPASSES


Do lado europeu, o principal obstáculo segue sendo a resistência de países com forte peso do setor agrícola, temerosos de uma abertura maior aos produtos do Mercosul, especialmente carnes e grãos. França, Áustria, Irlanda e Bélgica figuram entre os mais críticos, alegando riscos ambientais, concorrência desleal e impactos sobre pequenos produtores. A França, em particular, transformou a oposição ao acordo quase em política de Estado, pressionada por sindicatos rurais e por um debate ambiental cada vez mais sensível. Em contrapartida, há países claramente favoráveis ao tratado, como Alemanha, Espanha, Portugal, Países Baixos e Suécia, que veem no Mercosul um mercado estratégico para bens industriais, tecnologia e serviços. A Alemanha, maior economia da Europa, considera o acordo essencial para diversificar parceiros comerciais em um cenário global marcado por tensões com a China e incertezas na relação transatlântica com os Estados Unidos.


ITÁLIA


A Itália ocupa uma posição singular nesse tabuleiro. Oficialmente, Roma manifestou reservas ao acordo, alinhando-se ao discurso de proteção ao setor agrícola. No entanto, internamente, o país está longe de ser unânime. O norte industrializado, com forte presença de indústrias automobilísticas, metalúrgicas e de bens de capital, pressiona pelo avanço do tratado, enxergando no Mercosul oportunidades de exportação e investimento. Já o sul agrícola, mais dependente de subsídios e da proteção do mercado europeu, teme a concorrência direta de produtos agropecuários sul-americanos. Essa divisão regional reflete a dificuldade do governo italiano em assumir uma posição clara, tornando o país um fiel da balança capaz de influenciar o rumo das negociações.


EXPECTATIVAS


A retomada das negociações em 12 de janeiro, conforme anunciado por Ursula, é vista como uma tentativa de destravar pontos técnicos e políticos antes que o calendário eleitoral europeu complique ainda mais o cenário. As perspectivas de avanço existem, sobretudo pela pressão de setores industriais europeus e pela necessidade estratégica de fortalecer alianças comerciais em um mundo cada vez mais fragmentado.


Ainda assim, diplomatas reconhecem que dificilmente haverá um acordo sem concessões adicionais, seja em cláusulas ambientais, seja em salvaguardas agrícolas. O risco é que o processo continue se arrastando, alimentando a percepção de que o acordo UE–Mercosul é sempre “quase iminente”, mas nunca definitivo.


FRUSTRAÇÕES


No Mercosul, a frustração é particularmente visível no discurso do presidente Lula. Durante seu mandato à frente da presidência do bloco, Lula deixou claro o desejo de assinar o acordo como um marco político e econômico de sua gestão. O adiamento sucessivo representou não apenas um revés diplomático, mas também um desgaste interno diante da expectativa criada junto ao setor produtivo brasileiro.


Esse cenário se agravou pelas desavenças públicas entre Lula e o presidente argentino, Javier Milei, especialmente em relação à postura dos Estados Unidos diante da crise na Venezuela. Enquanto Lula critica sanções e defende maior diálogo regional, Milei adota um discurso alinhado a Washington, ampliando ruídos políticos dentro do próprio Mercosul. Essas divergências enfraquecem a coesão do bloco justamente no momento em que seria necessário apresentar uma frente unida nas negociações com a Europa.


No fim das contas, o acordo UE–Mercosul segue prisioneiro de interesses nacionais, disputas internas e da geopolítica global. A retomada das conversas em janeiro pode representar um novo fôlego, mas dificilmente apagará a sensação de que, mais do que um tratado comercial, o impasse reflete a dificuldade contemporânea de conciliar integração econômica com pressões políticas e sociais cada vez mais intensas.

Correio do Povo

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