Seu nome deu a volta ao mundo em 2012, com um discurso aplaudido na cúpula Rio+20
José 'Pepe' Mujica, o ex-guerrilheiro que chegou à Presidência do Uruguai com um discurso anticonsumista que o transformou em uma referência da esquerda latino-americana, morreu nesta terça-feira (13) aos 89 anos, informou o atual presidente Yamandú Orsi.
Conhecido como o 'presidente mais pobre do mundo', apelido que ganhou por vida austera, Mujica revelou, no começo deste ano, que o câncer de esôfago diagnosticado em maio de 2024 havia se espalhado e seu corpo não aguentava mais os tratamentos.
'Com profunda dor comunicamos que faleceu nosso companheiro Pepe Mujica. Presidente, militante, referência e líder. Vamos sentir muito a sua falta', escreveu Orsi em sua conta no X. 'Até sempre, velho querido!', afirmou seu partido, o Movimento de Participação Popular (MPP), também no X.
O governo brasileiro saudou 'um dos principais artífices da integração da América do Sul e da América Latina e, sobretudo, um dos mais importantes humanistas de nossa época', em um comunicado do Itamaraty.
'Meu ciclo terminou. Sinceramente, estou morrendo. O guerreiro tem direito ao seu descanso', disse em janeiro ao semanário Búsqueda o ex-presidente uruguaio (2010-2015). Sua médica pessoal, Raquel Pannone, confirmou na ocasião que Mujica estava com metástase no fígado.
Apesar da saúde fragilizada, Mujica foi um pilar crucial para o retorno ao poder da esquerdista Frente Ampla nas eleições de novembro de 2024, nas quais apoiou ativamente o presidente Yamandú Orsi. 'Têm um sabor agradável, é um pouco como um prêmio de despedida', disse, em entrevista à AFP após a vitória de seu herdeiro político.
Nas ruas de Montevidéu, os uruguaios começavam a viver o luto. 'Eu o conheci, era uma boa pessoa, humilde e trabalhador, e se cometeu algum erro, bem, somos humanos, podemos errar', afirmou à AFP Carlos Casal, um aposentado de 71 anos, sentado em um bar no centro de Montevidéu.'Que tristeza! Mas, ao mesmo tempo, ele foi tão imenso que é uma perda mais física mesmo (...)', disse com lágrimas nos olhos Mary Orique, uma funcionária pública de 45 anos.
Fora do protocolo
Mujica conquistou uma popularidade inusitada para o presidente de um país de 3,4 milhões de habitantes, estável e encravado entre os gigantes Brasil e Argentina. Seu nome deu a volta ao mundo em 2012, com um discurso aplaudido na cúpula Rio+20. Sem gravata, mas com um traje muito mais formal do que usava em sua Presidência - durante a qual participava de atos oficiais usando sandálias -, subiu ao púlpito da conferência e repreendeu o consumismo.
Um ano depois, foi ainda mais duro na Assembleia da ONU, na qual criticou que a humanidade tenha 'sacrificado os velhos deuses imateriais' para ocupar 'o templo com o deus mercado'. Em sua chácara modesta na periferia de Montevidéu, que se recusou a abandonar durante seu mandato, Mujica recebeu personalidades, como o rei emérito da Espanha, Juan Carlos II, e celebridades do mundo das artes, como o diretor de cinema Emir Kusturica
.O cineasta sérvio, fascinado pela personalidade do 'Pepe', fez um documentário que estreou em 2018. Tampouco faltaram polêmicas, com frases fora de tom, que viraram manchetes em todo o mundo. Um insulto direto à Fifa em 2014 e a indelével frase 'essa velha é pior que o vesgo', dita sem que ele percebesse que um microfone estava ligado, em alusão à então presidente argentina Cristina Kirchner e seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, são a ponta do iceberg de uma dialética que começou com 'não seja bobo', usado reiteradas vezes perante jornalistas.
De guerrilheiro a estadista
Em seu mandato, o ex-guerrilheiro se caracterizou por romper com as regras. Ele impulsionou a legalização do mercado da cannabis com um inédito plano que pôs o Estado para gerenciar da produção à comercialização da erva, e tomou outras decisões polêmicas, como receber presos de Guantánamo, em um acordo com o então presidente americano Barack Obama.
Essa rebeldia contra a ordem estabelecida, que o levou a ser, na juventude, um dos líderes da guerrilha urbana Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN), ativa no Uruguai da década de 1960 até 1972, também lhe permitiu suportar 13 anos de prisão em meio a torturas e condições desumanas.
Após sua libertação, em 1985, reintegrou-se na vida política e em 1989 fundou o Movimento de Participação Popular (MPP), que liderou até sua morte e transformou no setor mais votado de longe na Frente Ampla, o principal partido do país.Foi deputado em 1995, senador em 2000 e ministro da Pecuária e Agricultura em 2005, em sua trajetória para a Presidência.
'O maior acerto'
Em 2020, a pandemia o obrigou a renunciar a sua vaga no Senado, mas a militância e suas disputas dialéticas, tanto com adversários quanto com aliados políticos, permaneceram. Assim como o cultivo da terra, a paixão que viveu sobre seu trator em sua chácara até seu corpo dizer chega.
Sua esposa, Lucía Topolansky, ex-guerrilheira, ex-senadora e ex-vice-presidente (2017-2020) e sua companheira há mais de cinco décadas, foi outra constante em sua vida. 'Ter encontrado Lucía no fim das contas foi o maior acerto', disse Mujica em uma longa entrevista concedida à AFP em sua casa, poucos meses antes de morrer, cercado por seus livros e suas lembranças. Sem ela, assegurou, teria sido 'muito difícil' sobreviver.
AFP e Correio do Povo
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