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terça-feira, 22 de novembro de 2022

Decreto 11.034 reestruturou SAC sem priorizar a proteção dos consumidores

 por Joseane Suzart Lopes da Silva

O Serviço de Atendimento ao Consumidor, regido pelo Decreto Federal nº 11.034/22, cuja vigência iniciou-se em 5 de outubro de 2022, passou pelo crivo de atualizações que correspondem a retrocessos em comparação com o Édito nº 6.523/2008[1], que foi integralmente revogado. Nas disposições gerais, já se observam sutis alterações que não se harmonizam com o desígnio de promover a efetiva proteção dos destinatários finais[2]. Isso porque a anterior normativa referia-se, explicitamente, à observância dos direitos básicos de terem acesso adequado e claro sobre os dados do quanto contratado e de não de serem afetados por práticas abusivas. Já a hodierna menciona tão somente a "obtenção de informação adequada sobre os serviços contratados" e o "tratamento de suas demandas".

No parágrafo único do artigo 1º do Decreto, consta outra previsão, ausente no anterior, que também não se compatibiliza com o real propósito de bem atender às demandas dos consumidores[3]. Estabeleceu-se a regra de que o cumprimento das disposições deverá estar atrelado ao "porte do fornecedor do serviço regulado". Não se questiona que a estrutura econômica e operacional do empreendedor poderá lhe permitir ou não um atendimento mais amplo e condizente com as necessidades dos contratantes. No entanto, o caráter genérico da regra confere aos órgãos ou às entidades reguladoras a possibilidade de interpretação que não seja conforme com a necessária tutela dos vulneráveis[4].

Quanto ao atendimento, restou eliminada a regra da obrigatoriedade de contatos telefônicos, com humanos, durante todos os dias da semana e nas vinte e quatro horas que os integram, bem como foram instituídos novos ditames que reduzem prerrogativas anteriormente asseguradas. A inadmissível possibilidade de interrupção injustificada das ligações e a divulgação de mensagens durante o tempo de espera terminaram acatadas pelo governo federal. A acessibilidade das pessoas com deficiência foi vinculada à expedição de ato pela Secretaria Nacional do Consumidor, não se prevendo, de logo, a sistemática do atendimento preferencial, como outrora, desconsiderando-se a fragilidade dos hipervulneráveis[5]; o que desvela a concentração indevida de poderes na esfera federal e postura retrógrada[6].

 

O recente Decreto suprimiu o dever de registro de tais informações com objetividade, eliminando adrede a regra que tratava da atuação de empresas e grupos empresariais que ofertem serviços conjuntamente. Nessas hipóteses, não mais restará garantido que os sujeitos tenham acesso a canal único, que possibilite o atendimento de demanda relativa a qualquer um dos serviços oferecidos, ainda que existam diversos números de telefone. A extirpação de tal regra avilta o direito dos consumidores à informação célere e adequada sobre as suas demandas e não se concilia com a transparência na condição de vetor do microssistema vigente[7].

Determinava o artigo 4º, do Decreto n.º 6.523/08, que o SAC garantiria, no primeiro menu eletrônico, as opções de contato com o atendente, de reclamação e de cancelamento de contratos e serviços, sendo que a opção de diálogo pessoal constaria de todas as subdivisões do menu eletrônico. Com a vigência do Decreto nº 11.034/2022, o artigo 5º, inciso II, apenas determina que existam "opções mínimas constantes do primeiro menu, incluídas, obrigatoriamente, as opções de reclamação e de cancelamento de contratos e serviços". Não se manteve a possibilidade de contato pessoal com o staff do fornecedor na estrutura informatizada — situação que corrobora a assertiva de que o recém aprovado conjunto normativo se volta muito mais para os influxos econômicos do que para a tutela dos mais fragilizados.

A qualidade do tratamento das demandas não foi valorizada pelo Decreto em cotejo com o revogado, eis que foi retirada a obrigatória e relevante capacitação de atendentes e suprimiram-se as regras garantidoras da imediata transferência para o setor competente. O acompanhamento das solicitações também foi submetido a modificações que não se coadunam com o propósito de real proteção dos consumidores. Eliminou-se a regra que lhe assegurava o recebimento do registro numérico, com data, hora e objeto da solicitação, a ser enviado por correspondência ou por meio eletrônico, a seu critério, ou seja, para consegui-lo, o interessado terá que o solicitar. As novas normas não se harmonizam com o direito à informação e muito menos com os princípios da intervenção estatal e da transparência. Aduz Morello que "não pode haver uma democracia que se realize sem a presença de um Estado protagonista e forte"[8].

O consumidor terá direito ao conteúdo do histórico de suas demandas, que lhe será encaminhado, quando solicitado, no prazo de cinco dias corridos, por correspondência ou por meio eletrônico, a depender da sua escolha[9]. O prazo anterior era de setenta e duas horas e a sua ampliação é prejudicial, principalmente, quando se vislumbra que os órgãos ou as entidades reguladoras competentes poderão ampliá-lo. Consiste em regra que confere poderes para que o poder público fixe lapsus temporais superiores e que causem mais consequências negativas para os destinatários finais de bens. As alterações não foram benéficas para os usuários e não condizem com os direitos básicos à informação e de não serem atingidos com práticas mercadológicas abusivas[10].

Antes os consumidores tinham garantida a resposta agilizada sobre as informações solicitadas e, com as modificações, terão que aguardar uma semana ou mais, a depender do que deliberar a entidade reguladora, que, como não compõe o SNDC[11], pode tender às influências dos empresários. Os usuários não mais terão acesso à "resolução da demanda", mas, sim, sobre "a conclusão do tratamento", limitando-se o parágrafo 2º, incisos I e II, do artigo 13, a determinar que a resposta seja "clara, objetiva e conclusiva", abordando todos os pontos da solicitação feita. Significa afirmar que não pode o empresariado omitir-se em bem fundamentar a sua manifestação. Como aduz Pietro Barcellona, a intervenção estatal denotou-se necessária em face da autonomia privada que campeava às soltas, ocasionando ilicitudes que exigiam uma maior fiscalização e acompanhamento[12]. Sem embargo, o novo Decreto desvia-se do propósito de o poder público zelar pelo adequado e satisfatório atendimento à população.

Estabelecia o parágrafo 3º, do artigo 17, do Decreto nº 6.523/2008, que quando a demanda versasse sobre serviço não solicitado ou cobrança indevida, esta seria "suspensa imediatamente", salvo se o fornecedor indicasse o instrumento por meio do qual o serviço foi contratado e comprovasse que o valor era "efetivamente devido". O parágrafo 3º, do artigo 13, do decreto eliminou o trecho que impunha ao agente econômico a comprovação de que houve, de fato, o negócio jurídico questionado, para que mantivesse a exigência de valores. Caso não dispusesse de documento que realmente corroborasse a exigência de pagamento, não poderia continuar requisitando-o. Nas novas regras, consta apenas que o fornecedor "adotará imediatamente as medidas necessárias à suspensão da cobrança", porém, ao que parece, legitima que apresente argumentos, ainda que infundados, para manter a imposição equivocada de quitação.

O anterior decreto não vinculava o cancelamento às condições para a rescisão e ao pagamento de multas e a nova regra pode ser utilizada pelos fornecedores para a aplicação de sanções indevidas. As empresas podem também se valer do intitulado e não definido "processamento técnico da demanda", criando empecilhos ao desfazimento contratual, mantendo o consumidor ilicitamente preso às amarras negociais. Quanto ao cancelamento programado, é fundamental fiscalizar as empresas, para que realmente verifiquem a prévia concordância do interessado. Importante adrede chamar atenção de que o parágrafo único do artigo 14 prevê que os órgãos ou as entidades reguladoras competentes "fixarão prazo para a conclusão do processamento técnico da demanda". Essa regra demonstra risco de prejuízos para os consumidores, vez que, como apontado, as agências reguladoras não integram o SNDC e, ipso facto, não estão imbuídas do propósito de os defender.

O Decreto nº 11.034/2022 inovou ao tratar da efetividade do Serviço de Atendimento ao Consumidor, porém ao invés de serem estabelecidas regras que sejam proveitosas para os usuários[13], não avançou nesse sentido. São apontados os seguintes problemas quanto à estrutura normativa vigente: i) previsão de metodologia para aferir a eficiência, constando parâmetros restritos e insatisfatórios para a identificação das queixas registradas; ii) a concentração de poderes no âmbito executivo federal; o que pode ensejar arbitrariedades; e iii) a consequência prevista para o descumprimento é extremamente irrisória e não possui o condão de evitar e combater a violação aos ditames do SAC. Na hipótese de se detectar a "baixa efetividade dos SAC", dispõe o § 5º, do artigo 15, que a Secretaria Nacional do Consumidor "poderá" estabelecer "horário de atendimento telefônico por humano superior ao previsto no inciso I do caput do artigo 5º".

 Salienta-se que houve menção de uma mera possibilidade de o citado órgão federal assim agir e não de um dever — o que seria o mais pertinente devido ao princípio da intervenção estatal. De mais a mais, tão somente ampliar o horário do SAC é algo muito diminuto perante a sua ineficácia. Os fatores enumerados não condizem com os paradigmas que podem realmente refletir o contentamento ou não daqueles que vêm sofrendo as agruras de lidar com serviços que não atendem aos padrões de qualidade e de adequação. Não há sintonia entre as atualidades e o dever de o poder público diligenciar a defesa dos consumidores com esteio nos princípios da vulnerabilidade e da intervenção estatal. Torna-se crucial que o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor atente para que os destinatários finais de bens não sejam prejudicados por tais inovações, cuja involução desvela-se inquestionável.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] GAMA, Ricardo Rodrigues. Serviço de Atendimento ao Consumidor & CDC – Código de Defesa do Consumidor. Campinas/SP: Russel, 2009, p. 21.

[2] GREGORI, Maria Stella; FRAGRATA, Mariângela Sarrubo. O novo decreto de regulamentação dos SACs. Revista Consultor Jurídico, Opinião, 10 de abril de 2022. 

[3] Sobre a proteção dos consumidores e o atendimento realizado pelos fornecedores, conferir: BARENGHI, Andrea. Diritto dei consumatori. Milano: Wolters Kluwer Italia, 2018, p. 179 a 181. RAYMOND, Guy. Droit de la consommation. 5. ed. Paris: Lexis Nexis S.A., 2019, p. 71-80.

[4] Sobre a proteção dos consumidores e a importância do atendimento adequado por parte dos fornecedores, examinar: CALAIS-AULOY, Jean.; TEMPLE, Henri. Droit de la consommation. 8. ed.. Paris: Dalloz. 2010, p. 671 a 679. PAISANT, Gilles.  Droit de la consommation. Paris: Presses Universitaires de France - P.U.F, 2019, p. 261-271. PELLIER, Jean Denis. Droit de la consommation. 2. ed.. Paris: Dalloz, 2019, p. 7.

[5] Cf.: BAROCELLI, Sergio Sebastián (Dir.). La Problemática de los Consumidores Hipervulnerables en el Derecho del Consumidor Argentino. Buenos Aires: Secretaría de Investigación Facultad de Derecho, 2020, p. 7 a 58.

[6] MARTINS, Fernando Rodrigues.; SODRÉ, Marcelo Gomes. O enfraquecimento da tutela administrativa dos vulneráveis (Parte 2), Revista Consultor Jurídico, Coluna Garantias de Consumo, 29 de dezembro de 2021.  

[7] Sobre o direito à informação e o princípio da transparência, conferir as seguintes obras: VALLESPINOS, Carlos Gustavo.; OSSOLA, Federico Alejandro. La Obligación de informar en los contratos. Consentimiento informado. Derechos del consumidor. Buenos Aires : Hammurabi, 2010. KLOEPFER, Michel. Informationsrecht. Munique: Beck, 2002, p. 78.

[8] MORELLO, A. M. El acceso del consumidor a la justicia. In G. Stiglitz (Dir.). Reglas para la Defensa de los Consumidores y Usuarios. Buenos Aires: Editorial Juris, 2000, p. 39. 

[9] Examine-se o art. 12, parágrafo 2º, inciso I, do Decreto n.º 11.034/2022.

[10] DE CARLUCCI, Aida Kemelmajer. Prácticas abusivas en los contratos de consumo. In: STIGLITZ, R. S. (dir.). Código Civil y Comercial de la Nación. Contratos. Suplemento Especial. Buenos Aires: La Ley, Febr./2015, p. 249.

[11] Examinar: LAFFONT, Jean Jacques; TIROLE, Jean. The politics of Government Decision-Making. A Theory of Regulatory Capture. Quartely Journal of Economics. Massachussets: MIT Press, v. 104, n.º 4, November, 1991, p. 1088-1127.

[12] BARCELLONA, Pietro. Intervento statale e autonomia privata nella disciplina dei rapporti economici. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1969, p. 23-25.

[13] Acerca da proteção dos consumidores, consultar:  GHERSI, Carlos Alberto. La historia socioeconómica y cultural del consumo. In: GHERSI, C. A. (dir.), Manual de los Derechos de Usuarios y Consumidores. 2. ed. Buenos Aires: La Ley, 2015, p. 19-39.

Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 21/11/2022 e SOS Consumidor

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