Projeto concede a Viamão área do governo do Estado que é ocupada por aldeia do povo Mbyá Guarani
A doação de uma área pertencente ao estado do Rio Grande do Sul para o município de Viamão tem causado polêmica entre os deputados da Assembleia Legislativa. Isto porque o terreno é casa da aldeia indígena Tekoa Nhe'engatu, da etnia Mbyá Guarani.
A comunidade estava presente nas galerias do Parlamento gaúcho durante a sessão desta terça-feira. Os indígenas compareceram à sede do Poder Legislativo para uma audiência pública que tratou do tema horas mais tarde, mas que destoou do clima da sessão.
"O governador Eduardo Leite (PSD) cede uma área onde estão dezenas de famílias da etnia Mbýa Guarani aqui do RS, de Viamão. Essas comunidades não podem ser tratadas como objetos, como animais. Se olharmos para nossa história passada... o mesmo governo que está celebrando os 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis e destinou R$ 50 milhões para obras de infraestrutura, está esquecendo que esse povo vive e resiste à tentativa de genocídio que foi capitaneada pelos governo de Portugal e Espanha lá atrás”, discursou o deputado Jeferson Fernandes (PT), na tribuna.
“O próprio governo do Estado, que quer celebrar os 400 anos, protocolou projeto para retirar as famílias do seu território originário. Há mais de 2500 anos, essa etnia está no território gaúcho. Se hoje tomamos chimarrão, comemos churrasco e falamos o ‘tchê’, que em guarani significa ‘amigo’, é em função desse povo originário”, argumentou o deputado.
Em seguida, a deputada Luciana Genro (PSol) corroborou. “Lamento que a comunidade indígena guarani tenha tido seu violão, um instrumento sagrado, retirado para que não fizessem a manifestação da sua música, sua arte, no nosso plenário. É lamentável que tenhamos ouvido músicas e cantos em tantas oportunidades, mas que não possamos ter feito isso com os indígenas guaranis, que são os verdadeiros donos dessa terra.”
O deputado Guilherme Pasin (PP) foi ao microfone de apartes para dizer que há “normas que precisam ser seguidas” e parabenizar que o instrumento tenha sido impedido de acessar no plenário.
Ex-prefeito de Viamão, o deputado Valdir Bonatto (PSDB) também discursou para afirmar que a comunidade está sendo usada como massa de manobra. “Essa á uma área de 148 hectares que era da Fepagro e está sendo destinada para utilização no seu desenvolvimento e sua função social. Temos no município de Viamão cinco áreas indígenas. Essas comunidades têm sido reconhecidas e tratadas periodicamente pelo poder público”, iniciou o parlamentar.
“O que estamos discutindo é uma ocupação que se deu em fevereiro de 2024, uma estratégia política feita lá na cidade, conhecida por nós todos, sobre esta movimentação da ocupação daquela área como estava planejado por esse grupo de ocupação de outras áreas através do uso dos indígenas. O que, para mim, tem sido uma prática de comportamento de determinado setor da sociedade que não é justo com esses humanos que são os índios. Nossa maior aldeia é a do Cantagalo, que tinha mais de 100 famílias, hoje tem 40. Elas são migradas, levadas a cada momento para atender interesses político-partidários diferentes”, disse ainda Bonatto.
Governo Leite e deputados aliados ignoram audiência pública
Se houve debate sobre o tema durante a sessão plenária, o mesmo não ocorreu durante a audiência pública destinada a tratar da polêmica envolvendo a aldeia Tekoa Nhe'engatu. Apenas três deputados estiveram presentes: Adão Pretto (PT), que é de Viamão e propôs a audiência, Stela Farias (PT) e Luciana Genro (PSol). Nenhum secretário do governo Eduardo Leite (PSD) os seus aliados na Assembleia compareceu.
Esvaziada, a audiência contou apenas com apoiadores da comunidade e contrários ao projeto que repassa a área do governo do Estado para município de Viamão.
O primeiro a se pronunciar foi o cacique da aldeia, Eloir de Oliveira, que iniciou seu pronunciamento em guarani, mas depois falou português.
“Estamos num momento triste. Não queríamos estar passando por essa situação, após séculos de ocupação não-indígena em território indígena. Estamos retomando nossos territórios ancestrais, onde nossos bisavós, nossos antepassados viveram. O povo guarani quer viver em paz e busca isso desde que chegou nesse território hoje chamado de Brasil”, suplicou o cacique.
“Estamos sendo atacados por essa proposta, que nos pegou de surpresa. Pois, desde que iniciamos essa retomada, o Estado entrou com processo de reintegração de posse. Estava indo para uma conciliação, estávamos dialogando com o Estado. E, de repente, ele vem com essa proposta. Não esperávamos menos desse governo, que passa por cima da população indígena”, criticou ainda.
“Quando a gente chegou, não tinha mais vida. A área estava abandonada. Prédios construídos com recursos públicos, tudo derrubado, queimado. Hoje, a área tem vida. A água voltou a ter peixes, a mata a ter animais. Hoje, vai passar 88 hectares para a prefeitura, entre aspas - consequentemente vem uma empresa privada que vai instalar o centro logístico e tecnológico lá. Isso é a destruição do natural que ainda existe”, lamentou.
“O Estado tem uma dívida eterna que jamais pagará. Por mais que passe todo o território do RS para a população guarani ou qualquer população indígena, nunca pagará pelo extermínio que fizeram no passado para com os povos indígenas. Mas não estamos cobrando isso. Apenas queremos viver em paz.”
Comissão acionará MPF e Congresso Nacional
O deputado estadual Adão Pretto Filho (PT) preside a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia e propôs a audiência. Apesar do esvaziamento, lamentando por ele, a comissão deve ir a Brasília, além de seguir em busca de articulação com o Palácio Piratini.
“O governo do Estado, de forma açodada, apresenta um projeto de lei em regime de urgência, sendo que estava tendo uma tratativa com o governo federal para passar essa propriedade para a comunidade indígena. Havia um termo de cooperação vigente. Sem diálogo algum, o governador Eduardo Leite apresenta essa barbárie”, criticou.
“Lamentavelmente, não tivemos a presença do governo do Estado, de uma forma desrespeitosa à Assembleia Legislativa”, disse ainda Adão Pretto.
Entre as medidas aprovadas na audiência pública, está o encaminhamento ao Ministério Público Federal (MPF) de uma ação civil pública para “garantir os direitos constitucionais da comunidade indígena”, conforme afirmou o deputado.
Também será encaminhada solicitação ao governo do Estado e à Secretaria de Segurança Pública de suspensão imediata de qualquer ação de remoção das famílias; realização de audiência com o governo federal, com o Ministério dos Povos Indígenas, tratando de regularização fundiária e garantia de permanência das famílias na comunidade; e será enviado um documento ao Congresso Nacional solicitando apoio institucional das comissões de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Correio do Povo



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