AdsTerra

banner

domingo, 20 de outubro de 2019

Em Pernambuco, repórteres estão migrando das redações para empregos no governo

Governo está conseguindo controlar mídia

Redações estão ficando menos críticas

Salários mais altos atraem jornalistas

Jornalistas pernambucanos estão trocando as redações por empregos no governoDivulgação/NiemanLab

NIEMAN LAB
20.out.2019 (domingo) - 6h00

Uma realidade infeliz do setor de notícias hoje é que parece criar ex-jornalistas mais rápido do que cria jornalistas. Os relatórios sempre tiveram uma taxa de rotatividade saudável; os idealistas que vivem no centro da cidade se transformam em suburbanos proprietários de hipotecas e crianças, o que torna o salário de uma agência de comunicação ou de relações públicas mais atraente.

Mas o espaço para uma saída, intencional ou não, aumenta à medida que as lutas da indústria se arrastam. Há menos dinheiro para os editores dos jornais contrariarem uma oferta salarial concorrente. O trabalho na redação pode parecer menos gratificante. E as habilidades dos jornalistas ainda estão em demanda.

Esse é o pano de fundo que trouxe à leitura deste artigo de Murillo Camarotto, repórter do Valor Econômico do Brasil e ex-bolsista do Instituto Reuters de Oxford para o Estudo do Jornalismo.

Ele trata especificamente sobre 1 lugar do Brasil –Pernambuco, um Estado relativamente pobre no Nordeste– e sobre o que aconteceu quando as organizações de notícias da região enfrentaram o mesmo declínio estrutural que seus pares em outros países. O que aconteceu foi um número notável de repórteres deixando notícias para trabalhar para os governos que costumavam cobrir.

Desde 2007, o mesmo grupo político [o Partido Socialista Brasileiro] governa continuamente Pernambuco. Esta pesquisa mostra como esse grupo conseguiu se tornar politicamente mais forte na última década e, de alguma forma, reverter 1 relacionamento desfavorável com os jornais locais.

Apesar de ser 1 dos lugares mais pobres do Brasil, Pernambuco historicamente teve uma mídia local combativa e premiada. Até recentemente, os repórteres locais vinham ganhando os mais importantes prêmios de jornalismo nacional com histórias e iniciativas inspiradoras. Esse contexto está mudando dramaticamente, influenciado tanto pela interrupção digital no setor de mídia quanto por 1 processo de “drenagem” das redações.

Com base em dados exclusivos coletados nos meios de comunicação e em entrevistas, esta pesquisa mostra que os repórteres locais estão abandonando o jornalismo (muitos deles prematuramente) em uma das áreas mais pobres do Brasil, onde a vigilância pública é fundamental. Essas mudanças resultaram em graves falhas dos jornais locais no atendimento às Necessidades de Informações da Comunidade (NICs).

Primeiro, um rápido aparte: vale a pena observar algumas diferenças importantes entre esses jornais e o que você pode esperar, dada a indústria americana. Primeiro, os 3 jornais que Camarotto observa são bastante pequenos, mesmo em comparação com o triste estado atual da circulação americana.

O Jornal do Commercio tem uma circulação diária de 15.000. O Diário de Pernambuco caiu para 10.000 quando parou de relatar números de circulação há 2 anos. A Folha de Pernambuco parou de reportá-los em 2007. Tudo isso em 1 Estado de cerca de 9,2 milhões –maior que Nova Jersey ou Virgínia.

Segundo, as normas de propriedade são diferentes: “No Nordeste brasileiro, a maioria das publicações é tradicionalmente propriedade de políticos ou empresários locais e não dos grandes grupos da mídia nacional”.

Terceiro, os modelos de negócios dependem muito mais dos gastos do governo. Enquanto os jornais dos EUA estão felizes em publicar anúncios legais e outros anúncios enviados pelo governo, no Brasil, “é comum ver o governo federal, bem como as administrações estaduais e das grandes cidades, assinando grandes contratos anuais com meios de comunicação com tiragem de milhares de cópias por dia. Essas assinaturas são valiosas e os jornalistas estão profundamente conscientes de sua importância”.

E há publicidade comprada pelo Estado, há muito tempo uma alavanca de influência estatal nos jornais latino-americanos. (Recapitulação deste post de 10 anos do Nieman Lab sobre o assunto.) No Diário de Pernambuco, os pagamentos dos governos representaram 54,8% da receita total em 2017.

De volta ao estudo. Camarotto identificou 202 jornalistas que haviam deixado 2 dos 3 jornais (o Jornal do Commercio se recusou a cooperar) por 1 período de 10 anos e analisou os empregos para os quais haviam ido. A maior parcela -75 pessoas, ou 38% da amostra- saiu para trabalhar na política ou no governo.

Isso é mais do que o restante para outras mídias (27%), relações públicas do setor privado (14%), freelancers (9%) ou acadêmicos (5%). Camarotto diz que a participação no governo provavelmente seria maior se incluísse o 3º jornal, que “ainda é a opção mais desejável em termos de trabalho jornalístico em Pernambuco”.

Novamente, os repórteres que saem de suas redações não são novos, e os repórteres que se tornam porta-vozes do prefeito ou distrito escolar local não são inéditos. Mas a escala parece maior aqui, e Camarotto vê uma estratégia em ação (enfatiza a minha):

Esses números, combinados às entrevistas discutidas na próxima seção, apontam para uma estratégia de recrutamento dos melhores jornalistas das redações locais de Pernambuco. Esta pesquisa não pode provar que existe 1 plano deliberado para enfraquecer o jornalismo de vigilância local, mas entrevistas e análises qualitativas da produção das redações ao longo dos anos mostram que:

– os melhores profissionais estão agora do outro lado do balcão;

– os jornais locais tornaram-se muito mais dóceis.

[…]

Com base nos fragmentos de evidência, podemos reconhecer que 1 processo indireto de captura da mídia está ocorrendo em Pernambuco, com consequências preocupantes para a democracia local. Esse processo vem acontecendo paralelamente à interrupção digital, o que cria dificuldades para identificá-lo corretamente.

Durante as entrevistas, no entanto, alguns jornalistas que assumiram cargos no governo local perceberam que, a longo prazo, as redações de Pernambuco se tornaram mais dóceis.

“Acredito que foi uma estratégia bem-sucedida de captar de alguma forma os principais profissionais dos jornais, em seus respectivos campos de trabalho, e assim reduzir as tensões de ser perturbado pelos jornalistas todos os dias. Então, eles levaram apenas os repórteres mais críticos, que vêm fazendo as críticas mais duras. É óbvio que isso esgota as redações”, disse Micheline Batista, 47 anos, que deixou o Diário de Pernambuco para trabalhar para o Governo de Pernambuco.

(A captura de mídia é uma brincadeira com o conceito de captura regulatória, em que 1 setor obtém controle efetivo dos reguladores que devem mantê-la sob controle. Aqui, os governos que devem ser relatados estão capturando os repórteres.)

Camarotto dá 1 exemplo: 1 projeto especial do Jornal do Commercio chamado “PE Body County” para rastrear assassinatos na região, que na época estavam disparando. “O grupo [de 4 repórteres] conseguiu instalar 1 painel eletrônico em 1 local importante da cidade. Recife [a capital], exibindo em tempo real o número atualizado de assassinatos. ”Mas o projeto foi encerrado e nenhum dos 4 repórteres trabalha no jornalismo hoje: “Dois deles são os atuais secretários de imprensa do governo de Pernambuco e Prefeitura de Recife.”

Nas entrevistas de Camarotto, alguns ex-jornalistas dão razões familiares para sua partida –salários baixos, relevância em declínio, falta de espaço para progresso. Mas alguns viram o governo atraindo jornalistas estrategicamente.

“Eu não queria ir embora”, disse 1 repórter. “Acabei de chegar ao Jornal do Commercio e fiquei muito empolgado. Eu tinha 29 anos. Mas recebi uma boa oferta do secretário de imprensa do [governador], uma oferta que nunca procurei. Eu deveria ganhar duas vezes meu salário de repórter e isso realmente me tocou. Naquela época, eu não estava preocupado com isso, queria permanecer na redação. Mas eu fui”.

Talvez, como resultado, Camarotto escreve: “70% da amostra (repórteres que mudaram de redação para escritórios políticos) disseram que hoje em dia é muito mais fácil publicar comunicados de imprensa oficiais na mídia local. Muitos acreditavam que as redações de Pernambuco agora estão cheias de jornalistas inexperientes, que ainda não desenvolveram a capacidade de filtrar e verificar informações antes de publicar.”

O artigo também inclui algumas análises de conteúdo que visam mostrar 1 declínio na qualidade e quantidade dos textos jornalísticos durante esse período. Camarotto compara o compartilhamento de conteúdo local X nacional de uma semana de jornais de 2019 com a mesma semana de 2009; sem surpresa, ele encontra uma grande queda na cobertura local.

Ele também compara a cobertura de 2 escândalos locais específicos com 17 anos de diferença –1997 e 2014– e encontra uma enorme queda no número de histórias sobre eles produzidas nos jornais locais. Não tenho certeza do valor dessa comparação. Os 2 escândalos que ele escolhe, ambos sobre o mesmo ex-governador, parecem bastante distintos, e o declínio na cobertura beira o absurdo (311 histórias versus 20), de uma maneira que me faz pensar que os 2 são difíceis de se comparar.

E para medidas mais amplas de declínio, como a deslocalização, é difícil saber que parcela da culpa recai sobre os problemas econômicos da indústria versus as saídas de repórteres específicos. Ainda assim, seu argumento mais amplo –“que os principais jornais se tornaram muito mais complacentes” na cobertura do governo– parece bom.

Como disse anteriormente, o contexto político da mídia brasileira é diferente em aspectos importantes do que você vê nos Estados Unidos, no Canadá ou em grande parte da Europa.

Mas o caso de Pernambuco é 1 lembrete de que repórteres talentosos têm opções –e o declínio do estado econômico das notícias locais poderia enviá-los às instituições que mais precisam de cobertura, deixando para trás os menos experientes –e talvez menos jornalistas de confronto– para fazer o trabalho que desejam.

“O jornal está se tornando 1 diário do governo”, disse um ex-jornalista. “Durante meu tempo lá, tínhamos de 3 a 5 pessoas em cada seção e isso já era insuficiente. Agora eles têm 1 ou 2. O jornal é muito amordaçado e o efeito sobre o conteúdo é perceptível. O jornal não pode criticar o prefeito ou o governador.”

“Trabalhei em estreita colaboração com repórteres mais velhos, pessoas com mais experiência”, disse outro dia de seu jornal. “Então foi mais fácil aprender. Eu realmente admirava muitos colegas, pessoas que conhecem profundamente o passado, os governos passados. A redação costumava ser um ambiente de troca de informações. A memória é crucial para o jornalismo, e estamos perdendo.”

__

*Joshua Benton é diretor do Nieman Lab. Antes de passar 1 ano em Harvard como Nieman Fellow em 2008, ele passou uma década em jornais, mais recentemente no The Dallas Morning News. Seus relatórios sobre fraudes em testes padronizados nas escolas públicas do Texas levaram ao fechamento permanente de 1 distrito escolar e ganharam o Philip Meyer Journalism Award de Investigative Reporters and Editors. Ele se apresentou em 10 países estrangeiros, foi Pew Fellow em Jornalismo Internacional e foi 3 vezes finalista do Livingston Award for International Reporting. Antes de Dallas, ele era repórter e crítico de rock ocasional do The Toledo Blade. Ele escreveu seu primeiro HTML em janeiro de 1994.

__

Leia o texto original em inglês aqui.

__

O Poder360 tem uma parceria com duas divisões da Fundação Nieman, de Harvard: o Nieman Journalism Lab e o Nieman Reports. O acordo consiste em traduzir para português os textos que o Nieman Journalism Lab e o Nieman Reports produzem e publicar esse material no Poder360. Para ter acesso às traduções já publicadas, clique aqui.

Autores

NIEMAN LAB enviar e-mail para Nieman Lab @NiemanLab

Poder 360

Nenhum comentário:

Postar um comentário