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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A revolução na medicina em busca da vida eterna

Empresas investem na ampliação e no aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos e científicos para estender a vida com qualidade

Por Adriana Dias Lopes

Viver, viver cada vez mais e melhor, preferencialmente para sempre, é uma das buscas eternas do ser humano. É procura que, desde os primórdios do conhecimento traduzido em palavras, alimentou pensadores, escritores e poetas. Houve o rei sumério Gilgamesh, cuja epopeia, registrada em tabuletas, nos idos de 2000 a.C., narrava a descoberta de uma planta que concedia imortalidade a quem a ingerisse. Houve Titono, melancólico personagem da mitologia grega que pediu a Zeus a eternidade mas se esqueceu de encomendar também a mocidade permanente. No século XVI, o conquistador espanhol Juan Ponce de León navegou pelos novos mundos em sucessivas expedições ao encontro da fonte da juventude. O Dorian Gray de Oscar Wilde, em 1890, vendeu sua alma para não envelhecer. E assim seguimos, numa ambição desenfreada, incansável, longuíssima, que Carlos Drummond de Andrade resumiu com bonita ironia em 1954: “E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno. Eterno! Eterno! O Padre Eterno, a vida eterna, o fogo eterno”.

O que as belas letras criaram, porque a imaginação é infinita, começa agora, enfim, a pousar no mundo real das pesquisas de ponta e das realizações científicas. Não existe movimento mais interessante na medicina, hoje, do que os avanços no campo da imortalidade, e não há nessa afirmação nenhum exagero (ainda que estejamos longe, muito longe, da vitória final). Apenas no ano passado, Apple, Amazon, Google, Microsoft e Facebook aplicaram grande parte de seu faturamento nos Estados Unidos — algo em torno de 150 bilhões de dólares, o equivalente a 600 bilhões de reais — no chamado mercado da longevidade. O Google fundou a Calico, acrônimo em inglês para California Life Company, cujo objetivo, atrelado a frondoso 1 bilhão de dólares de investimento, informa o site da empresa, é nítido: “Além da genética, nós nos preocupamos com as características do envelhecimento, a energia celular, as respostas do organismo ao stress. Nossas principais áreas terapêuticas incluem a cardiologia, a oncologia, a neurodegeneração e a inflamação crônica, porque a incidência dessas condições aumenta acentuadamente na velhice e está associada a alta mortalidade”.

Nas palavras do professor israelense Yuval Noah Harari, autor do best-seller Sapiens: uma Breve História da Humanidade, “a morte já é opcional”, embora essa condição possa estabelecer um novo tipo de desigualdade, e haverá quem não tenha onde cair morto: o fosso entre os que poderão pagar pela eternidade e os que padecerão sem acesso aos tratamentos inovadores. O gerontologista britânico Aubrey de Grey é autor de uma celebrada provocação: “O ser humano que terá 1 000 anos já nasceu, está vivíssimo entre nós”. Segundo ele, daqui para a frente “nosso corpo será tratado pela medicina como a engenharia lida com uma máquina — quebrou, conserta-se”. Harari e De Grey bebem da fonte de um guru desses novos tempos, embora a expressão “guru” tenha caído na vala das platitudes: o americano Raymond Kurzweil, diretor de engenharia do Google, conselheiro de Bill Gates, que se intitula inventor e futurista. Ele é o criador de um conceito com a força das grandes ideias, a “singularidade”, segundo a qual em 2029, logo ali na esquina, a humanidade terá os recursos de inteligência artificial necessários “para que máquinas alcancem a inteligência humana, inclusive a inteligência emocional”.

Kurzweil acredita que será possível implantar no cérebro um computador do tamanho de uma ervilha para substituir neurônios destruídos pelo Parkinson. E então, depois disso, para que morrer? Há quem enxergue, no futuro desenhado por Kurzweil, um amontoado de estultices, utopias que jamais verão a luz do dia — não é o caso do time de executivos bilionários do Vale do Silício, para quem o santo graal é a vida eterna, concreta e objetivamente.

Para além das inventivas fronteiras californianas, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) fundou o Laboratório de Envelhecimento, conhecido como AgeLab e dedicado à elaboração de tecnologias para prolongar a existência. Um dos projetos a todo o vapor hoje por lá é fazer com que jovens fortes e vigorosos sintam no próprio corpo as mudanças fisiológicas deflagradas a partir dos 70 anos. Óculos turvos dão a sensação de amarelecimento da visão que acompanha a idade. Um cinto amarrado ao pescoço imita a mobilidade reduzida da coluna cervical. Um conjunto de faixas ao redor dos cotovelos, pulsos e joelhos simula rigidez. Luvas especiais afetam a acuidade tátil. Sapatos de plástico com solado irregular desequilibram o caminhar. A ideia é antecipar soluções que auxiliem organismos ainda jovens na prevenção de problemas futuros. Diz Joseph Coughlin, pai do AgeLab: “Na virada do século XX para o XXI, criamos o maior presente da civilização — trinta anos extras de vida —, e não sabemos como lidar com isso. Agora que estamos vivendo mais, como planejaremos o que vamos fazer?”.

A extensão da vida é uma possibilidade real — e já vem acontecendo. Na ponta do lápis, um brasileiro nascido em 1919, um século atrás, portanto, viveria até 34 anos, em média. Quem nasce hoje, salvo as más surpresas que a vida apronta, pode chegar tranquilamente aos 76 anos. E há um ineditismo: pela primeira vez existe mais gente no planeta com mais de 65 anos do que com menos de 5. Vive-se mais em decorrência da melhora no saneamento básico, do desenvolvimento de remédios puxados pela penicilina, das vacinas e do cuidado na alimentação, bem como em razão da prática de atividades físicas.

SIMULAÇÃO – Da visão embaçada à falta de equilíbrio: o MIT criou roupas que simulam os sinais do corpo de 70 anos

SIMULAÇÃO – Da visão embaçada à falta de equilíbrio: o MIT criou roupas que simulam os sinais do corpo de 70 anos (./.)

Tudo isso é mais do que sabido. O que se pretende, neste instante — e eis uma espetacular primazia —, é dar uma esticadinha e, quem sabe, evitar o inelutável desfecho. Em uma reportagem de 2017 da revista The New Yorker, considerada um manifesto que abriu alas e deu nome aos bois dessa novíssima onda científica, o jornalista Tad Friend dividiu o grupo de titãs que investem na imortalidade em duas grandes famílias: os healthspanners, que sonham com o prolongamento da vida saudável, mas somente se ela for realmente saudável; e os immortalists, para os quais sempre existirá um dia seguinte, interminavelmente. Os healthspanners são majoritários, âncoras de um olhar inédito na história da medicina, que pode realmente revolucioná-la: é possível atacar algumas doenças intervindo no processo natural de envelhecimento — em outras palavras, tratando o envelhecimento em si, de maneira a retardar o surgimento dos males e, insista-se, colando qualidade de vida onde antes havia decrepitude. É esse o espaço de atividades mais produtivo.

Há quem pense de forma mais ambiciosa e cujo objetivo seja nada menos que a perenidade — custe o que custar. Diz Arram Sabeti, fundador de uma companhia de tecnologia especializada em alimentação, a ZeroCater: “A proposição de que podemos viver para sempre é óbvia, e não viola as leis da física. É natural que cheguemos lá”. Há algum exagero nesse raciocínio, porque natural mesmo é querer tempo suplementar, segurar o relógio até onde der. Duas áreas hoje se destacam no prolongamento da vida dos seres humanos: a dos cuidados com o coração (60% dos problemas cardíacos surgem em pessoas acima dos 56 anos) e a da atenção ao câncer, e a íntima ligação com o sistema imunológico (70% dos incidentes oncológicos despontam depois dos 60 anos). Há zelo especial também com o cérebro e a fase terminal em UTIs (conheça o que já existe e o que virá em breve nos quadros desta reportagem).

DE VIRAR A CABEÇA – A fé ajuda: estudos mostram os benefícios da espiritualidade

DE VIRAR A CABEÇA – A fé ajuda: estudos mostram os benefícios da espiritualidade (Lin Liangbiao/VCG/Getty Images)

“Nos próximos dez anos, dentro do atual ritmo dos avanços, a medicina será capaz de curar 90% dos cânceres em fase inicial e 50% dos que estão em estágio avançado”, diz Fernando Maluf, diretor do Centro de Oncologia da Beneficência Portuguesa e membro do comitê gestor do Hospital Albert Einstein. Deu-se, há duas semanas, no Brasil, um extraordinário passo nessa direção. O mineiro Vamberto Luiz de Castro, de 62 anos, foi o primeiro paciente no país a receber um tratamento totalmente individualizado contra o câncer — um linfoma não ­Hodgkin de alto risco. Castro já havia sido submetido a quatro terapias diferentes, e nenhuma funcionara. Agora, por meio de um método conhecido como CAR-T, que associa imunoterapia a engenharia genética, ele renasceu. Cerca de vinte dias depois do início do acompanhamento, feito no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, com dinheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a doença regrediu a patamares ínfimos. É o futuro, vivido hoje.

Episódios bem-sucedidos como esse tendem a ser comuns. Brotam aqui e ali, em toada de permanente progresso. As apostas seguintes já podem ser levadas à mesa. Haverá celebração, nos próximos meses, em torno de dois terrenos de exploração:

A rapamicina, um imunodepressor usado contra o processo de rejeição a órgãos transplantados e que se mostrou eficiente no bloqueio de uma enzima que acelera a divisão celular, atalho para o envelhecimento; em camundongos, a substância aumentou a expectativa de vida em até 38%. A medicação começou a ser testada em seres humanos.

A metformina, remédio prescrito tradicionalmente para o diabetes, que serve também como corretor de DNA defeituoso; um time de pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP descobriu recentemente uma relação entre o uso da droga e a redução nos casos de câncer de pescoço e cabeça.

Como tudo é questão de tempo, e não se deve perder o fio da meada (o que se investiga é o infindável ou um modo de fazer a travessia com dignidade), quanto antes os problemas forem detectados, melhor. O nome do jogo é monitoramento, com dedicada participação do doente e recursos de medicina remota. “A interação entre as duas áreas é de tal importância que fez surgir um novo campo da ciência para melhorar a longevidade dos pacientes: a cardio-oncologia”, afirma Ludhmila Abrahão Hajjar, professora de cardiologia do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora nacional de cardio­-oncologia da Rede Américas. No modelo nem tão antigo assim, os dados de todo doente eram coletados apenas em consultas e ficavam armazenados em imensos computadores. A atualização era feita a mão, na visita seguinte. Hoje, as informações estão disponíveis no smartphone ou em relógios inteligentes, meio caminho andado para a prevenção. A Dasa, a maior rede de medicina diagnóstica da América Latina e a quinta maior do mundo, inaugurou uma tecnologia que pretende integrar o cuidado com o enfermo por todos os lados. Imagine uma pessoa indo ao laboratório para fazer um ultrassom do fígado. O diagnóstico diz que ela tem gordura no órgão. Os dados são transferidos tanto para o médico quanto para o paciente. A partir de então, um programa de inteligência artificial, que já tinha informações prévias do doente, como peso, idade e hábitos de vida, além dos vícios, cruza todas as informações científicas possíveis sobre a doença em si e as relaciona com o doente. Ele prevê, dentro do quadro analisado, o futuro da gordura do fígado: vai se transformar em fibrose, cirrose, câncer ou simplesmente não vai evoluir? “Estamos vivendo a maior transformação comportamental da história da medicina”, diz Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião do aparelho digestivo e especialista em uso de inovações na saúde. “Ferramentas de monitoramento a distância com alerta imediato aos médicos deverão ser os métodos ideais para o diagnóstico precoce e o tratamento eficiente das principais doenças”, afirma Roberto Kalil Filho, professor titular de cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês.

Não há dúvida de que a ciência vem possibilitando a extensão da vida humana. Mas, curiosamente, a fé também ajuda. Existem trabalhos que escrutam, minuciosamente, o peso da prática da religião e da espiritualidade na longevidade. A Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, mostrou recentemente que frequentadores de ritos religiosos que estimulam sentimentos como gratidão e atividades como oração ou meditação (independentemente do credo) tiveram a vida prolongada em quase uma década. A tese foi comprovada em dois estudos que avaliaram 1 600 obituários. Foram isolados todos os outros fatores de risco. Em breve, serão feitos estudos com devotos em vida.

Essa reviravolta — os investimentos dos gigantes do Vale do Silício, a fervura dos laboratórios e a saúde na palma da mão, além de uma boa dose de espiritualidade — compõe pílulas de renovada esperança em busca da vida eterna por aqui mesmo. Na Terra.


CORAÇÃO

(Amir Cohen/Reuters)

– AS NOVIDADES

Órgão em 3D. O músculo cardíaco será desenvolvido por meio de impressora tridimensional. Criado por cientistas da Universidade de Tel-Aviv, o dispositivo carregará o material genético do paciente e substituirá os transplantes. O protótipo pioneiro foi apresentado há apenas seis meses (foto acima). O modelo, pouco maior que a ponta do polegar, tem o tamanho de um coração de coelho. Outras versões já foram fabricadas — mas a israelense é a primeira a ser confeccionada com todos os vasos sanguíneos, ventrículos e câmaras, usando uma tinta feita a partir de substâncias biológicas naturais. O desafio agora é criar um órgão compatível com o tamanho do corpo humano.

– PARA QUANDO

Dentro de dez anos


SISTEMA  IMUNOLÓGICO

(./Shutterstock)

– AS NOVIDADES

Contra o câncer. Na oncologia, as células de defesa do corpo combaterão os mais diversos cânceres, de forma totalmente individualizada. Nos próximos dez anos, a medicina será capaz de curar 90% dos tumores em fase inicial e 50% daqueles em estágio avançado.

Na infectologia. Um remédio desenvolvido para pessoas acima dos 65 anos (o RTB101), da empresa americana de biotecnologia resTORbio, estimula o corpo para que ele não sofra com doenças infecciosas, como gripe e pneumonia, que levam 1 milhão de idosos aos hospitais a cada ano, apenas no Brasil.

– PARA QUANDO

Contra o câncer: em dez anos
Contra infecções: em dois anos


TERAPIA INTENSIVA

(CRAIG CUTLER/.)

– AS NOVIDADES

Canções de ninar. A incidência de morte nas UTIs hoje é de 20%. O objetivo é que não passe de 5%. Para isso, a indústria investe em duas frentes. Uma delas pretende evitar ao máximo o stress do paciente, que dificulta o tratamento. O Hospital de Genebra, na Suíça, está testando um modo de monitorar a reação cerebral de bebês com a estimulação por meio de música. Detector de bactérias. O Instituto de Tecnologia Guwahati, na Índia, aposta em um dispositivo eletrônico capaz de diagnosticar o tipo exato de bactéria instantaneamente. O feito evitará a principal causa de morte nesta área do hospital, a sepse — infecção generalizada.

– PARA QUANDO

Música: em dois anos

Detector de bactérias: em cinco anos


CÉREBRO

(./.)

– AS NOVIDADES

Derrame. Uma em cada cinco pessoas acima dos 65 anos é acometida da doença. A Cleveland Clinic, em Ohio, está desenvolvendo uma técnica que usa estímulos cerebrais para eliminar suas sequelas. No primeiro teste, uma mulher teve os movimentos de um dos braços recuperados.

Alzheimer. A Universidade de Tübingen, na Alemanha, investe em um teste que detecta a doença dezesseis anos antes de os sintomas aparecerem. Ele rastreia o nível da proteína NfL, que compõe a estrutura interna das células nervosas. A presença da NfL em alta quantidade é indício de que os danos ao cérebro associados ao Alzheimer já começaram.

– PARA QUANDO

Derrame e Alzheimer: em dez anos

(./.)

Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658


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