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domingo, 14 de novembro de 2004

Terra sem História, por Voltaire Schilling*

a partida para o Alto Parus é ainda o meu maior, o meu mais belo e mais arrojado ideal. Estou pronto à primeira voz. Partirei sem temores... nada me demoverá de um tal propósito”

Euclides da Cunha, Carta de Guarujá 6/7/1904.

O primeiro encontro dos dois, de Euclides da Cunha com o Barão do Rio Branco, deu-se no palacete Westfália, em Petrópolis, em julho de 1904. Local para onde o chanceler se retirava em descanso. Quem levou o escrito até a presença do Juca Paranhos, como o barão era conhecido em moço, foi um diplomata, Domício da Gama, por igual um intelectual. Apesar da timidez, dele, de Euclides da Cunha, frente a Rio Branco, àquela altura um verdadeiro monumento nacional, os dois conversaram por cinco horas. O escritor só se viu liberado às duas da madrugada.

Ambos estavam no auge da fama, Euclides, com a publicação de Os Sertões, em 1902, denunciara a guerra do governo brasileiro contra os caboclos da Bahia; o outro, pelo Tratado de Petrópolis, de 1903, evitara que os caboclos do Acre entrassem em guerra contra o governo de La Paz.

Os unia a paixão pela História e pelo Brasil. De resto eram diferentes em tudo. O barão descendia do patriciado luso-brasileiro, era filho do Visconde de Rio Branco, homem habituado aos viveres da Europa. Um monarquista que se colocara a serviço da República, Euclides, ao contrário, era “um bugre”, como ele mesmo dizia. Um cariri, um indiozinho que, moço, fora republicano mas que àquelas alturas se decepcionara com o regime de 1889. Ao contrário do barão, nunca fez questão de ir conhecer Paris. Queria, isto sim, era desbravar “as paisagens bárbaras”, meter a cara nos assombros do Brasil ainda pouco desconhecido.

O barão, sempre atento aos talentos, o satisfez. Em 9 de agosto de 1904, nomeou-o chefe da Comissão do Alto Purus para ir fixar as longínquas fronteiras com o Peru. Talvez esperassem dele de uma outra maravilha literária resultante do contanto de Euclides com as selvas.

A Amazônia frustrou o escritor. Impressionante sim. Muita água, imensa, barrenta, perigosa, muito mato, muito cipó e muito bicho. Uma “imensidão deprimida”. De dia silenciosa, de noite um carnaval. A fauna, aos ruivos, aos gritos e aos pios, fazia a festa a partir do pôr-do-sol. Sentiu-se lá um Adão no jardim paleozoico. Tudo lhe era estranho, fantástico, e muito chato. Tudo lhe era estranho, fantástico, e muito chato. Para onde se olhava via-se a desolação, tudo raso e plano.

O rio, sempre desbordando, desmoralizava qualquer trabalho sério. A marge de hoje soçobrava nas correntes do amanhã. Lá, as matas caminham em meio a um tumulto permanente produzido pelas monstruosas leis fisiológicas da região. Os moradores, pendurados nas palafitas, só sobreviviam pelo nomadismo. Por isto, na Amazônia, excetuando-se a concentração enérgica dos seringueiros em Manaus, a civilização era impossível. De resto, o caucheiro “é o homúnculo da civilização”, vilmente explorado pelos coronéis do barranco. Era um reino sem história - “à margem da história”, como designaram a coletânea de artigos dele publicada em 1907.

Chegado a Manaus em 30 de dezembro de 1904, depois de uma viagem de 17 dias, rumou logo pôde para a sua missão. Acompanhou-o um capitão peruano, dom Pedro Buenaño. Até por um naufrágio ele passou no Baixo Purus. De onde estava quando podia, informava o barão. A Amazônia era uma esfinge. Ninguém conseguia abarcar o seu todo. Mal e mal captavam-se facções da natureza. A amplidão é tal que ofusca o entendimento, inibe mesmo uma “inteligência heroica”.

Antes de findar a expedição que durou quase um ano. Em carta a Domício de Gama, Euclides imaginou o ridículo de uma guerra entre o Brasil e o Peru. Como se dois duelistas, um no alto do Pão de Açúcar e o outro no Corcovado, tentassem terçar espadas separados por um abismo vazio.

Bendita essa viagem de Euclides de cem anos atrás. Ainda que a Amazônia continue rendendo muito pouco, a nossa ensaística enriqueceu-se com as observações dele, ao ponto de até hoje, entre tantos que escreveram sobre aquela “Terra sem História”, ninguém conseguiu deixar, em prosa, nada que fosse superior à de Euclides da Cunha.

*Historiador

Fonte: Zero Hora, página 13 de 14 de novembro de 2004.

 

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