segunda-feira, 13 de março de 2023

A Velhice

 Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm  mais de vinte anos , os Brunos Migueis já  vão  nos quinze , as katias e  as Sónias deram lugar às Martas , Cararinas , Marianas .A maior parte dos policias são  mais novos do que eu . Comecei a gostar de  sopa de  nabiças. A apetecer-me voltar  cedo para  casa . A observar  no espelho matinal desabamentos,  rugas imprevistas,  a boca  entre parentesis cada vez mais  fundos .A ver os meus retratos de  criança como se olhasse um estranho.  A deixar de me preocupar com o futebol,  eu que sabia de cor os nomes completos dos jogadores do Benfica . A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado de cigarrilha nas gengivas achava peitorais. 

Se calhar  daqui a um pouco uso um sapato num pé  e uma pantufa de xadrez no outro e vou de bengala  contar os pombos do Príncipe Real que circulam  de mãos  nas costas como os chefes  da repartição em torno do cedro.  Ou jogar sueca com colegas de  boina na Alameda   

Afonso Henriques , de manilha definitiva suspensa no ar numa atitude de Estátua da Liberdade . Ou internam-me no Meu Lar , Recebe Idosos Inválidos  &  Convalescentes a fim de passar as tardes à  janela em casaco de pijama numa poltrona de orelhas,  com os bolsos  cheios de  palitos,  capicuas e migalhas de bolacha Maria , visitado na Páscoa por sobrinhos apressados e saquinhos de  amêndoas. Quando  der por mim encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira a troçar-me num copo de água com trinta e dois dentes de plástico . Reconhecerei o meu lugar à  mesa pelos frasquinhos dos medicamentos  sobre a toalha que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos,  vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos,  cravavam nos gelos polares.

Serei como aquela  prima idosa surdíssima , outrora bonita , com uma enorme telefonía à  cabeceira,  a quem o enfermeiro que lhe dava as injeções para o reumático comentou

---‐Que lindo rádio a senhora tem

e ela num suspiro , de nádegas ao léu à  espera da seringa , orgulhosa e  coquete

----- Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.

Devo estar a ficar velho . E no entanto , sem que me dê  conta , ainda me acontece  apalpar  a algibeira à  procura da  fisga . Ainda gostava de  ter canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas,  tesoura , abre-latas e chave de  parafusos .Ainda queria que o meu  pai me comprasse  na feira de Nelas um espelhinho redondo com a fotografia Yyonne de Carlo em fato de banho  do outro lado.

Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar os intervalos  das pedras. Ainda  me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama .

Ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos Almanaques Bertrand  do sótão  organizado pela Sra.D.Maria Fernandes 

Costa e de escrever nas soluções quando a  pergunta é Grande  Escritor Português Infelizmente Já Falecido,  o nome do emérito 

Poeta General Fernandes Costa. Pensando bem

(e digo isto ao espelho )

não  sou um senhor de idade que conservou o coração menino .Sou um menino cujo envelope

se gastou.

António Lobo Antunes


Fonte: https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid026nVvABUQUxiEDFQfB7crsUD4T2yCqus53w9Qc2WpxasARpbUinJsCbZJHvNexF9el&id=100001275065317

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