Venezuelanos cruzam fronteira do Brasil para fugir da violência e da fome

Nos últimos meses, olhares voltaram-se para a linha de 1.492 quilômetros que limita os territórios do Brasil e da Venezuela devido ao aumento das solicitações de refúgio

Em Boa Vista, venezuelanos enfrentam dificuldades na esperança de melhores condições de vida | Foto: George Castellanos / AFP / CP

Em Boa Vista, venezuelanos enfrentam dificuldades na esperança de melhores condições de vida | Foto: George Castellanos / AFP / CP


O aumento significativo do fluxo de emigrantes é uma das consequências da crise econômica e política que atinge a Venezuela. Entre os receptores dos venezuelanos está o Brasil, que viu o número de solicitações de refúgio disparar principalmente no último ano. O contingente migratório já vinha crescendo desde 2015, ano em que se agravou a crise iniciada em 2013.

O Brasil faz fronteira com dez países. Nos últimos meses, os olhares voltaram-se para a linha imaginária de 1.492 quilômetros que limita os territórios do Brasil e da Venezuela devido ao aumento das solicitações de refúgio, especialmente por causa da falta de infraestrutura adequada no estado de Roraima para receber essa demanda. O número de pedidos de refúgio passou de 2.804, em 2015, para 2.223, em 2016, e disparou para 6.438 até julho de 2017, segundo o OBMigra, Observatório das Migrações Internacionais, vinculado ao Ministério do Trabalho. Isso apenas na capital roraimense, Boa Vista. No restante do Brasil, foram registrados 7,6 mil pedidos em 2017. Em 2015, foram 829 e, em 2016, 3.368.
A mesma estrada leva a Manaus, capital do Amazonas e polo econômico da região. “A minha percepção é que os venezuelanos que puderem não vão ficar em Roraima, onde já há pouca alternativa de trabalho. A distância de ônibus entre Boa Vista e Manaus é de 12 horas e ali (referindo-se à capital amazonense) há possibilidade de maior inserção na economia brasileira através de um posto de trabalho”, afirma o professor de Relações Internacionais e especialista em fronteiras, Camilo Pereira Carneiro. Manaus também possui know-how para a recepção de estrangeiros, já que passou pela experiência de receber refugiados haitianos, que chegaram pela floresta Amazônica a partir de 2010.
A capital amazonense possui, desde então, um centro de acolhida ao imigrante que seria mais adequado a atender ao contingente em comparação com a estrutura roraimense. O Brasil possui mais de 15 mil quilômetros de fronteiras com outros territórios. As cidades que servem de ponto de passagem entre diferentes países, geralmente, têm características muito peculiares, que não se repetem. Mas também há algumas similaridades.
Via de regra, são poucas as cidades fronteiriças que possuem infraestrutura de comunicação, aeroporto, rede de hotéis ou sistemas de Educação e saneamento básico adequado. “A maioria das cidades de fronteira que existem no Brasil tem esse quadro de abandono relativo ao isolamento por conta da falta de ligação com o interior do território brasileiro”, analisa Carneiro, que começou a trabalhar com o estudo das fronteiras brasileiras durante o mestrado em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2006.


Apesar de o Brasil receber um grande contingente de venezuelanos, o fluxo maior é para a Colômbia. Para lá, migraram entre 550 mil e 1 milhão de venezuelanos desde o início da crise

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo o pesquisador, também é normalmente muito baixo em cidades de fronteira quando comparado a outras cidades do estado fronteiriço. “A exceção no Brasil são cidades como Foz do Iguaçu, Uruguaiana e Santana do Livramento, que são cidades atípicas para fronteira, pois possuem uma rede de infraestrutura urbana bem densa. E são essas as cidades de fronteira que os brasileiros normalmente conhecem. Apesar disso, a maior parte delas são muito pouco conhecidas pela maioria da população”, aponta.
Os imigrantes não têm apenas o Brasil como destino. O fluxo maior é para a Colômbia. Para lá migraram entre 550 mil e 1 milhão de venezuelanos desde o início da crise. No Brasil, até o ano passado, segundo registro estimado pela Universidade Federal de Roraima, entraram entre 30 mil e 40 mil pessoas. “A Colômbia recebe um impacto muito maior dessa crise venezuelana. Outros países da América do Sul também têm recebido venezuelanos, sobretudo a partir de 2015, que foi quando a crise se agravou”, observa Carneiro.
Outra contagem, entretanto, aponta que estão hoje no território brasileiro entre 50 mil e 60 mil venezuelanos. A discrepância de informações é tão grande que os dados oficiais da Prefeitura de Boa Vista são contestados pela Universidade Federal de Roraima. A prefeitura da cidade que é a principal porta de entrada para o Brasil afirma que existem 40 mil venezuelanos apenas em Boa Vista. Os pesquisadores do curso de Relações Internacionais da universidade apontam que o número está superestimado, pois isso significaria que 10% da população da cidade é estrangeira, o que não procede.

A principal dificuldade em saber quantos imigrantes ingressaram no país reside na característica da fronteira. Ela é seca, ou seja, não é necessário apresentar documento de identificação, como identidade ou passaporte, para cruzá-la. Por conta disso, é difícil diferenciar quem entra para fazer compras no supermercado, quem é imigrante e pretende permanecer em Roraima e quem tem planos de seguir para outras cidades brasileiras.
“Nesse tipo de fronteira não há como saber quem vai ficar no país e quem vai comprar uma mercadoria e retornar, porque não há exigência de controle de cada um que passa. O que ocorre é que se a pessoa estiver dentro do território brasileiro, longe da fronteira e for parada em um ponto de fiscalização, ela vai arcar com as penalidades por não ter recebido o carimbo de entrada no seu passaporte”, explica o professor.
Para permanecerem no Brasil, os imigrantes precisam obter documentação junto ao posto da Polícia Federal. Os venezuelanos pedem status de refugiado, o que garante a eles uma série de direitos, inclusive a ter CPF e tirar carteira de trabalho, além do direito de não ser mais passível de deportação. “É esse documento que o governo brasileiro está dificultando, porque alega que deve ser analisado caso a caso. Há uma massa tentando tirar o documento e o governo federal reluta. É uma atitude política do governo por conta do medo de sobrecarregar os serviços públicos de saúde e educação nas cidades do estado de Roraima que não têm condições de receber tantas pessoas”, opina.


A situação mais precária é dos venezuelanos indígenas. Eles afirmam deixar a Venezuela, principalmente, por causa da fome

Do contingente de 60 mil que teriam ingressado no Brasil, a Polícia Federal registrou, no ano passado, 30 mil pedidos oficiais de regularização. Segundo pesquisa promovida pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), vinculado ao Ministério do Trabalho, a maioria dos venezuelanos não indígenas vivendo em Roraima é jovem, possui boa escolaridade, tem atividade remunerada e paga aluguel. Entre os que trabalham, 51% recebe menos de um salário mínimo (hoje em R$ 954) e 28% estão formalmente empregados. Muitos enviam parte do dinheiro que ganham de volta ao país natal para ajudar os familiares que permaneceram.
A situação mais precária é dos venezuelanos indígenas. Esses afirmam deixar a Venezuela, principalmente, por conta da fome. “Esses índios venezuelanos são a parte mais pobre da população do país e entra em situações muito precárias, mesmo sem documentação. Eles sobrevivem nas ruas de Boa Vista como mendigos, vivendo da boa vontade da população local, que oferece comida e lugar para tomar banho”, afirma Carneiro, que já visitou praticamente todos os trechos da fronteira ao Norte do Brasil. “Esse contingente é o mais marginalizado de todos. Eles não aparecem muito nas estatísticas porque são marginalizados inclusive dentro do próprio país.”

A população venezuelana indígena chega ao Brasil sem documentação e sobrevive da boa vontade da comunidade local das cidades fronteiriças, que oferece comida e lugar para banho

Enquanto o número de imigrantes aumenta, o Brasil ainda pedala para consolidar uma política adequada para receber esse fluxo. O país tem um percentual muito pequeno de migrantes, apenas 1% da população de mais de 200 milhões. Para se ter uma ideia, 4% da população Argentina, país com pouco mais de 40 milhões de habitantes, é estrangeira. “O Brasil é um país muito maior, tem muito mais população e poderia receber muito mais migrantes. O problema é que Roraima não tem condições de receber sozinha esse fluxo. Deveria haver uma política do governo federal para transmitir essas pessoas para outros estados da federação.”
O professor aponta que, recentemente, o governo Temer mostrou preocupação com as questões humanitárias em relação a esse contingente migratório, mas que existe um descompasso entre o discurso e o que está sendo feito. Durante a visita do presidente a Roraima no início de fevereiro, Michel Temer seguiu acompanhado apenas por membros ligados à Segurança, Defesa e militares. “O governo está preocupado com a segurança, a defesa e o controle dessa população que está entrando e não está tomando medidas eficazes para minorar o sofrimento deles, pelo menos para regularizar a situação no país, fornecer documentação e serviços mínimos”, diz Carneiro.


Correio do Povo

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