O herdeiro de Mao Tsé-tung¹

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No dia 1° de abril de 1969, sob a presidência de Mao Tsé-tung e com a participação de 1512 delegados de toda a República Popular Chinesa, inaugurou-se o Nono Congresso do Partido Comunista Chinês, cujos debates – segundo anunciara a Rádio de Pequim – girariam à volta de remodelação da Constituição do Partido e da eleição da Comissão Central. Nas bancadas dos convidados, sentavam-se guardas vermelhos, antigos soldados do Exército Vermelho, mulheres, guardas fronteiriços “que acabavam de conquistar novos méritos” (alusão óbvia aos incidentes sangrentos sino soviéticos em Chen-Pão ou Damanski, nome russo da Ilha em litígio no Rio Ussuri, da fronteira do Extremo Oriente).

No momento em que subiam a plataforma de honra, Mao Tsé-tung e Lin-Piao foram longamente aclamados pela multidão, que, deste modo, consagrou a segunda posição de Lin na hierarquia do Partido e seu delfinato à sucessão do regime, designado pela primeira vez, em janeiro, num documento distribuído pelos membros do Partido: “O camarada Lin-Piao é o último companheiro de armas do camarada Mao Tsé-tung e seu sucessor.” Entre os mais altos dignatários, logo depois de Mao, também Chiang Chinh, sua terceira mulher, outrora atriz de corpo escultural, que se murmura ter sido a inspiradora da Revolução Cultural...

Mao Tsé-tung, Lin-Piao e Chu En-lai foram eleitos presidente, vice-presidente e secretário geral do Congresso – o primeiro, desde os remotos dias de 1956(quanto caminho percorrido!) e o maior na existência do Partido Comunista Chinês. Em seguida, Lin-Piao, em nome da Comissão Central, apresentou um relatório, exaltando “a missão de combate que incube ao Partido”.

Ninguém poderá, jamais, adivinhar que ideia perpassariam pelo cérebro do velho Mao nessa hora – se o seu pensamento se volvia melancolicamente para o passado ou se, ensimesmado e arrogante, perscrutaria o futuro da dimensão da mesma escala em que improvisou, comandou, sofreu e venceu a “Grande Marcha” e, partido dela, do zero, arrancou para o presente, simples instante dialético na mística de uma vitória final, total e universal.

Imaginemos, aliás com pouca lógica, que retrocedia à explosão da primeira arma atômica chinesa (essa, que tinham tão ferozmente desejado, que o ministro do Exterior confidenciou a um grupo de jornalistas estrangeiros: “Andaremos sem calças, mas teremos nossa bomba!”) e à eliminação, de cena política, de Nikita Sergueievitch Kruschev. O próprio Mao, Liu Chao-chi e Chu En-lai passavam de mão em mão a comunicação oficial da embaixada daURSS. Liu Chao-chi e não Lin-Piao, ao mesmo tempo que, em Washington, a Comissão de Energia atômica anunciava com foros de sensação, após análises das cinzas radioativas da atmosfera, que o engenho chinês não era uma bomba rudimentar de plutônio, como o mundo legitimamente suspeitara, mas uma bomba de urânio enriquecido. Esta verificação alterava radicalmente os dados do problema e sugeria a prova que a ciência atômica chinesa estava muito além da fase incipiente.

Em outubro de 1964, os dirigentes chineses pareciam vencedores na crista vaga; reclamavam a cabeça de Nikita e promoviam a cisão no seio de Partidos. Um mês depois, Chu En-lai chegava a Moscou à frente de uma delegação e pedia Brejnev a a Kossyguine que não fizessem Kruschnevismo sem Kruschev... Sem dúvida, os russo foram cordiais, mas, de volta a Pequim, os chineses, apesar de sua bomba e da mudança de chefia operada no Kremlin, talvez não estivessem já seguros de se haver voltado, tão decisivamente, uma página da sua história milenar...

Talvez por isso, a evolução na República Popular Chinesa tomou o rumo da Revolução Cultural... Impunha-se dar a réplica a Moscou, fortalecer e endurecer o regime, prepará-lo para grandes batalhas de um futuro, que, afinal, as substituições na Praça Vermelha não permitiam, talvez, evitar.

Contudo, a Revolução Cultura a ninguém deveria surpreender, pois, em certa medida, não era mais que um desdobramento das vastas e profundas convulsões que antecederam. O estudo generalizado das ideias de Mao Tsé-tung, a eliminação de costumes enraizados e de obsoletas maneiras de pensar, as mutações de toda ordem, os ataques aos intelectuais burgueses, tudo isso vinha de trás, Recomeçava, agora, mais do que com vigor – com autêntica violência. Por outro lado, surgiu uma série de fatores inéditos, ainda em parte inexplicados no Ocidente: a súbita erupção dos guardas vermelhos e seus métodos terroristas, na sequência da espantosa revelação de que certos corifeus do Partido, incluindo personagens muito altamente colocadas e cotadas da linha dura (por exemplo, Peng-Chen, presidente do Município de Pequim) eram passíveis de gravíssimas acusações antipartido e até de eliminação física ao mesmo tempo que a estrela de Lin-Piao principiava a ascender vertiginosa e fulgurantemente para o zênite político...

O recrudescimento revolucionário foi acompanhado de preocupante crise, fermentada e desenvolvida no mais impenetrável segredo. Todavia, filtravam-se ainda assim, até ao Ocidente, elementos suscetíveis de permitir a reconstituição aproximada do seu calendário. No mês de setembro de 1965, Mao Tsé-tung e o Comitê Central do Partido decidiram dar um novo “salto em frente”, desta vez de caráter político e social e destinado a esmagar a gentinha do revisionismo. A depuração foi desencadeada em novembro, alastrou-se em janeiro-fevereiro de 1966 (ao mesmo tempo que Mao se eclipsava misteriosamente, da cena política, num mar de boatos sobre enfermidade grave e mesmo sobre a sua morte) acabando por degenerar, em março-abril, numa batalha violenta e secreta em que, no seio do próprio Comitê Central, os dirigentes se despedaçavam uns aos outros.

Em abril-maio, o fenômeno tomou o nome da Revolução Cultural e as massas foram chamadas a participar dele. Em junho, Peng-Cheng, caiu em desgraça, e a Central de Pequim, organismos condutores de propaganda e da cultura, Estado-Maior do Exército.

No mês de agosto, Lin-Piao surgiu, como que da penumbra, e começou inesperadamente a agigantar-se. Simultaneamente, o mundo teve conhecimento da existência dos guardas vermelhos, anunciada por um vendaval de violência e de sangue. A 18, um milhão de pequineses cumpriu-se na praça Tien An Men – oceanos de gente sem precedentes na História da China. Na imensa quadra e nos parques circunvizinhos, centenas de milhares de estudantes e seus professores ostentavam braçadeiras de guardas vermelhos. Na tribuna, ladeando Mao Tsé-tung (afinal renascido dos boatos), a ordem habitual dos altos dignatários do Partido não sofrera alterações. Perto dele, porém, notou-se a presença de um companheiro, sem dúvida dos mais ilustres, mas por longo tempo invisível: Lin-Piao. Este 18 de agosto assinalou uma data talvez capital da República Popular Chinesa: o regime fez-se aclamar pelos comparsas da Revolução Cultural e o reaparecimento da silhueta esguia de Lin-Piao, em momento tão crucial, iria em breve ser entendido em sua plena significação. Tratava-se, na verdade, de apresentá-lo como homem novo para uma tarefa nova, não já aos quadros do Partido ou à população anônima de Pequim ou aos próprios batalhões do exército do Povo, que todos esses o conheciam, mas às forças, pela primeira vez mobilizadas em massa, da juventude proletárias das escolas e universidades, rapazes e moças entre os 15 e os 25 anos, a mais recente vaga da China em marcha para o futuro – uma vaga que, pelo menos, prometia ser mais implacavelmente dura que a dos seus antecessores.

Largando-lhes as redes visavam-se a vários objetivos: o efeito da vassourada brutal para suprimir toda e qualquer tendência de aburguesamento, a criação de uma fora de ataque indispensável à facção partidária que logrou impor a linha dura endurecida, a entrada em cena tantas vezes acenada à juventude de modo a criar-lhe condições em que ela acreditasse estar empenhada em sua própria revolução. Por outro lado, a terrível ameaça suscitada pelos acontecimentos do Vietnã, portanto num plano das fronteiras chinesas,começava a inchar, nos receios de alguns, o fantasma de uma guerra sino americana.

Mas há quem formule explicações mais transcendentes e profundas. Hoje, na China Popular, atinge a idade adulta toda uma imensa geração inteiramente formada no espírito e nos métodos do regime comunista que Mao enraizou nos interesses dos camponeses e operários. Os chineses que contam menos de 40 anos são portadores, no corpo e na alma, da marca vermelha dos tempos novos. Os jovens, que o comunismo chinês surpreendeu e colheu em pleno jardim da infância e que educou inteiramente sob sua lei, o que representam, agora, como proporção na dos menores e 20 anos? Só eles – são quase a metade! Por outro lado, peritos ocidentais calcularam que, mantendo-se o ritmo médio de crescimento demográfico, a população chinesa poderá atingir 960 milhões, em 1980, dois ou três anos mais tarde um bilhão e no ano 2000, eleva-se a 1,4 bilhões de habitantes. E ninguém admite, sequer, um decréscimo desta curva, nos primeiros tempos do segundo milênio da nossa era, apesar de uma gigantesca campanha anticoncessionista que se processa por meios médicos e psicológicos – pois mais de cem milhões de rapazes e moças, na flor da idade, são mantidos na mais rigorosa castidade, persuadidos com argumentos de ordem moral e política: o bom comunista coloca o amor depois das necessidades da produção econômica, pensa que um e outro são inconciliáveis, que o amor é inoportuno porque perturba a produção e enfraquece o zelo político... Paradoxalmente, num regime em que o orgulho tem de ser riscado do mapa dos erros capitais do homem, fomenta-se afinal a heroização dos jovens exacerbando o puritanismo no seio da própria coeducação de rapazes e moças, acumulando forças perigosamente explosivas a que em recurso de emergência, tem de ser dada vazão, dinamizando-a ao serviço dos interesses e dos métodos revolucionários.

Poderá esta ser uma explicação aceitável?

Seja como for, eis que a Revolução Cultural rebentou por toda parte, depurando, aterrorizando e derrubando, até, valores que a própria civilização universal, no tempo e no espaço, cotara como monumentos imperecíveis do gênio. Nem sequer escaparam Shakespeare, Balzac, Beethoven, Victor Hugo, Pushkine, ídolos alcandorados por Lênin, outro ídolo que os próprios guardas vermelhos não ousavam discutir...

Mao contestou-se, inesperadamente, o velho Liu Chao-chi, presidente da República Popular Chinesa, durante tantos anos considerado seu indefectível número dois. Quatro meses após o começo da Revolução Cultural, ele foi posto em causa, pela primeira vez, e acusado de acionar “grupos de movimento” para “confiscarem a revolução” em proveito da ala direita do Partido Comunista Chinês.

Em outubro de 1966, era denunciado abertamente, nos jornais de parede afixados em Pequim, como “chefe da linha revisionista burguesa” e forçado a fazer autocrítica, que o diretório do Partido rejeitou. Em 4 de janeiro de 1967, seus próprios filhos publicaram, no órgão dos guardas vermelhos, revelações sensacionais acerca da “alma maldosa” do pai. Depois, o “Diário do Povo” e o “Bandeira Vermelha” criticaram os atos de Liu Chao-chi e assim principiou uma campanha que logo degenerou em manifestações e violências através de todo o país. A imprensa oficial foi ao ponto de lhe chamar “monte de excrementos de cachorro”, de implicá-lo numa conjura com Moscou para eliminar Mao Tsé-tung, de levar infâmia à sua própria família, acusando a esposa de espionagem a soldo dos Estados Unidos.

Em julho, depois de certa calma, a campanha contra Liu Chao-chi, redobrou e atingiu uma fase extremamente perigosa para o velho lutador. Assim, o Partido Comunista Chinês assinalou o 46° aniversário de sua fundação com um comunicado comemorativo, inserto no “Bandeira Vermelha”, em que se anunciava ao mundo: “Durante a grande Revolução Cultural proletária, iniciada e orientada pelo Presidente Mao, denunciamos e expulsamos a alta personalidade do partido que tinha tomado um rumo capitalista.” Tecnicamente, a partir dessa hora, Liu Chao-chi estava eliminado da vida política do regime de que ele próprio fora um dos mais valentes e fanáticos edificadores. Ao sinal da suprema hierarquia do Partido, a campanha encarniçou-se ainda mais. Nas ruas da cidade ocorriam manifestações de estudantes no espaço erguiam-se de gigantescos balões com slogans estigmatizando a vida de Liu, a imprensa multiplicava contra ele as mais insólitas acusações.

Liu Chao-chi submeteu-se a mais duas autocríticas – mas o Partido e os jovens consideraram-nas “insuficientes, falhas de sinceridade, inaceitáveis”. De certo ele resistiu ainda, entrincheirado na tenacidade feroz com que ajudou a modificar a História, porém a proverbial ingratidão dessa mesma História acabou por empurrá-lo da ribalta e envolvê-lo na degradação e na penumbra.

Mao e aqueles que o inspiravam uma vez mais ganhavam a partida, retumbantemente, e apesar de pertinazes boatos de que a Revolução Cultural se tornara um movimento torrencial e incontrolável, a verdade é que, a semelhança das réplicas dos sinos catastróficos, ela foi decrescendo, foi-se acalmando pouco a pouco e acabou por adequar-se às proporções e ao ritmo da vida quotidiana. Estudar fanaticamente a doutrina maoísta – em todas as circunstâncias e em cada minuto, endossando ao pensamento do chefe a paternidades de todas as vitórias, mínimas ou espetaculares, eis a que se reduziu a Revolução Cultural, no âmbito de uma campanha de educação socialista que se estendeu com amplitude crescente, de Kharbine e Cantão, de Xangai a Urumchi, nas comunas e oficinas, nas universidades, nos escritórios e casernas, nos comitês de rua e associações de mulheres, nas formações da liga da juventude, nos sindicatos, associações artísticas e literárias, nas próprias células do Partido em todos os escalões – centenas de milhões de chineses agrupando-se e organizando-se para estudar o pensamento de Mao, fonte de toda a sabedoria, como haviam sido Buda e Confúcio... Até que os primeiros meses de 1969 trouxeram consigo o mau vento de novos sobressaltos quando, ao norte de Vladivostok, chineses e soviéticos travavam o primeiro de uma série de sangrentos combates a pretexto da posse de uma ilhota cuja existência na véspera, só bem poucos conheceriam. Este choque armado culminou uma série de azedas disputas verbais, encetadas em 1965. A pretensão da China às províncias do Rio Amur baseia-se na alegação de que o tratado de Pequim, de 1860, foi assinado sob coação, e, da parte dos russos, vislumbra-se certa preocupação, pois a área em litígio é a derradeira vastidão territorial arrancada por uma grande potência ao débil império chinês e ainda em poder usurpador. Porém, para lá de tudo isso que sobretudo respeita, no imediato, a dois países ideologicamente irmãos, mas antagonizados por uma implacável luta de morte, à conquista da liderança do mundo comunista, para lá de tudo isso, dizíamos, o Ocidente quedou estarrecido com os tiros disparados das margens do Rio Ussuri, como se lhe rebentassem junto dos ouvidos, ao verificar que, afinal, os chineses s encontravam às portas da Europa.

E há quem preveja que, dentro de alguns anos, a China maoista, embora já fisicamente sem Mao, a China porta-bandeira da miséria rebelde do Mundo, estará no meio de nós, na plena autoridade do seu gigantismo, para pôr em causa e disputar a hegemonia dos dois grandes sobre o planeta. Sem dúvida, esse prodígio será dos menos da era de 2000...

¹ Especialmente escrito para esta edição brasileira pelo jornalista português Dr. Francisco Alves, visa a máxima atualização desta obra.

Fonte: Mao Tsé-tung, o imperador vermelho de Pequim, de E. Krieg. Páginas 239 a 248.

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