A bomba atômica chinesa

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Passaram sete anos. O “grande salto em frente” está esquecido. As “comunas populares” subsistem, mas nada têm de comum com a ideia profética que delas fazia Mao Tsé-tung. A China, mesmo assim, foi avançando em seu caminho. Já não há um único conselheiro russo em seu território. Em contrapartida, fábricas, barragens, refinarias de petróleo, conjuntos metalúrgicos e químicos e estradas de ferro enchem todo o país, nos mesmos pontos em que ainda há pouco no mapa só havia grandes zonas em branco.

O 14 de outubro de 1964 parece um dia como os outros. A República Popular da China tem quinze anos e quatorze dias. No meio de uma das últimas zonas em branco que ainda há no mapa da China, no centro do deserto no Sinkiang, foram levantadas estranhas estruturas de cantoneira de aço. É uma verdadeira torre que se eleva naquela paisagem lunar.

Longe dali, afastados por quilômetros de cascalho cinzento acre que cobre o Deserto de Tarim, construíram-se fortins de cimento. Parecem ouriços, cheios de antenas, de radares, de periscópios. No interior, há homens com os olhos protegidos, ativos, num ambiente de tensão. Alguns estão instalados diante de quadros de comando em que piscam misteriosas luzes; outros parecem entregues a complicados cálculos; e há os que mantém os olhos colados a tubos que lhes dão a imagem do grande deserto que se estende para Leste. Uns têm as habituais túnicas cinzentas ou azuis, outros usam os cordões dourados ou prateados que distinguem oficiais superiores do Exército Popular.

Há ordens transmitidas em voz baixa. Um amplificador de som vai transmitindo indicações técnicas. No fundo sonoro, ouve-se uma contagem inversa: “Wu.. Si... Er... Yi...” (Cinco... Quatro... Três... Dois... Um...)

Uma luz intensa amarelo-alaranjada, que a vista não consegue sustentar, espalha-se por todo o céu, enquanto lá no alto, no local para onde o clarão vertical pareceu dirigir-se, gigantescas nuvens de poeira, de vapor de água e de fumaça desenham os contornos de um enorme e gigantesco cogumelo.

A milhares de quilômetros dali, três homens tomam conhecimento do que se passou no Deserto de Tarim, no Sikiang.

Mao Tsé-tung estende a mão aos dois chefes da China: Liu Chen-chi, Presidente da República, e Chu En-lai, Primeiro-Ministro. Mao, com idade, engordou mais. É agora obeso, mas mantém a vivacidade. Um inefável sorriso erra-lhe na gorda face, que cada vez lembra mais a de um prelado de operetas. O rosto ainda mais magro de Liu continua impassível. Chu, por seu lado, parece saborear especialmente aquele momento. Mais do que nunca, tem um ar parecido com o de Charles Boyer.

“A China já dispõe de arma nuclear” – murmura. Mao nada diz, mas seus pensamentos recuam quinze anos, até Àquela tarde de 1° de outubro de 1949, quando gritou, na “Porta da Paz Celestial”, perante uma multidão em delírio:

“E agora, que tomem cuidado os reacionários, aqui e no estrangeiro.”

Os reacionários são todos os que quiseram a derrota da China Vermelha, os que agitaram diante de Mao o espantalho atômico: tanto os americanos como os russos. Hoje rebentou a primeira bomba atômica da Ásia – e é chinesa. É a primeira bomba nuclear que não pertence ao homem branco, que escapa ao seu controle. Explodiu naquele mesmo Sikiang que Stalin tentara colonizar em proveito da União Soviética, nessa enorme província para a qual Mao já não hesita em reivindicar o prolongamento ocidental, o que significa a faixa do Cazaquistão soviético, arrancado à China indevidamente (diz ele) pelo imperialismo dos Czares...

Muitas coisas se passaram em sete anos, desde que Mao Tsé-tung abandonou o poder efetivo para se concentrar em seu papel de chefe do partido, guia, inspirador teórico supremo da China Popular.

Houve anos terríveis de fome, Três anos – 1960, 1961 e 1962 – de secas que alternaram com chuvas diluvianas, geadas e canículas. A China superou-as. Sob a direção fria e lúcia de Liu Chao-chi e de Chu En-lai, a produção agrícola assegura agora a todos os chineses arroz para todos os dias e carne ou peixe uma vez por semana. A indústria desenvolve-se. A China já quase não é um país subdesenvolvido. Sua produção industrial equivale a mais de um quarto da produção da Rússia. Os chineses habituam-se a trabalhar e a afastar tudo o que não seja produtivo; a religião, o amor, a frivolidade. Suas distrações são graves, educativas.

A escrita, a bela escrita chinesa foi reformada, simplificada. O analfabetismo diminuiu. O individualismo, tão ferozmente enraizado na terra chinesa, é combatido sem piedade. O regime está forte e é estável. Houve modificações de “linha”, demissões e mudanças no alto da pirâmide do poder. Mas sempre se evitaram as depurações sangrentas, o regresso ao terror. Liu Chao-chi e Chu En-lai continuam sendo chefes incontestados e Mao é o super líder, o pai, o sa´bio, o árbitro, o último recurso. Seu prestígio em nada foi prejudicado por seus erros, nem por seu retiro.

Sua popularidade é imensa. E o culto da personalidade desenvolve-se harmoniosamente; há retratos gigantescos do líder por todo o lado. Não desdenha as digressões pela província, que sempre lhe causaram prazer. Não renunciou ao seu esporte favorito: dois anos antes, com sessenta e nove anos, voltou na nadar nas águas revoltas do Yang-Tsé.

Mao pode considerar-se satisfeito por ter renunciado, em fins de 1958, aos encargos diretos do poder. Sabe que lhe é mais fácil manejar as ideias do que os fatos, a teoria do que a realidade. Os erros do estadista foram esquecidos, ficou a prestígio imenso do técnico, do pensador. O que na China se passa de mau é feito às suas escondidas. Mas tudo que é bom se deve ao seu impulso, ao resplendor de suas obras: o êxito dos halterofilistas chineses, como a produção do complexo industrial da Manchúria, devem-se aos seus pensamentos, e o mesmo quanto ao título mundial de tênis de mesa, conquistado pela equipe chinesa, e quanto à explosão atômica do Sikiang, para a felicidade conjugal do casal Weng, de Cantão, e quanto à excepcional colheita de que nesse ano se beneficiou o Hu-Nan, quanto à invenção do operário de Xangai. Que permite fabricar mais economicamente as munições, e quanto ao reconhecimento do governo de Pequim pela França do General De Gaulle.

Porque, também no plano internacional, a Chine de dia para dia avulta como potência reconhecida, respeitada, temida. Só os Estados Unidos se obstinam em apoiar Chang Kai-chek, sempre refugiado em Formosa, a qual cairá – diz Mao – por si mesma, como fruto maduro. A França, que desde janeiro de 1965 tem seu embaixador em Pequim, toma o comando do movimento que tem por objetivo fazer finalmente ingressar a China Popular nas Nações Unidas. Mas Mao, como grande senho, finge desprezar a ONU (Em outubro de 1971 a ONU admitiu a República Popular da China, eliminando o Governo Nacionalista de Formosa). E lança mesmo a ideia de se constituir uma segunda ONU, a Organização das Nações do Terceiro Mundo, cuja chefia mantém firmemente. Para demonstrar que é o único capaz de inspirar o enorme e movediço mundo ex-colonial, não hesita em afrontar a influência soviética em Jacarta como em Argel, em Conakry como em Havana. Não perde a menor oportunidade de demonstrar até que ponto a inconstante política de coexistência pacífica de Moscou se assemelha ao “neocolonialismo” dos imperialistas ocidentais. Em toda a Ásia, na África, na América Latina os peritos chineses se acotovelaram com os da Rússia e dos países do Leste europeu e por vezes afastam-nos, Kruschev abandonou Cuba no momento da prova de força entre Fidel Castro e Kennedy. Que belo tema de propaganda! A Indonésia de Sucarno é devota de Mao, Nehu morreu e a Índia de seus sucessores acomoda-se com as “retificações de fronteiras” a que os chineses procederam pela força, uma verdadeira guerra “mirim”. O Tibete, depois do esmagamento da revolta de Lhassa de 1959 e da fuga do Dalai Lama, parece definitivamente domado, submetido pela imigração chinesa em massa. No Vietnã do Sul, o Vietcongue, mais aliado a Pequim do que a Moscou, torna a vida dura para os americanos e seus amigos. O Camboja do Príncipe Sihanouk enveredou pelo neutralismo alinhado por Pequim, Hong Kong, essa verruga inglesa no flanco do continente chinês? “Bastará – diz Mao – um telefonema quando o arrendamento terminar, em 1997”. Os chineses sabem esperar. E, além disso, enquanto se espera, Hong Kong é uma janela útil aberta sobre o mundo, especialmente para o comércio.

Nas fronteiras do norte e do ocidente da China, os problemas estão em suspenso. Nos confins do Cazaquistão, da Sibéria, dessa Mongólia Exterior que os russos mantêm num verdadeiro protetorado, os incidentes de fronteiras atingem as centenas. Mao nunca esquece que já há setecentos milhões de chineses – em breve serão um bilhão – acumulados num país relativamente pequenos, ao passo que as imensas terras quase virgens da Sibéria Soviética estão subpovoadas e assim ficarão ainda muito tempo. Estas extensões enormes e despovoadas da Sibéria e da Mongólia exercem sobre a China superpovoada uma fascinação que não tem apenas motivos históricos, ou demográficos, ou econômicos.

Se o problema foi ventilado em público por Mao Tsé-tung, com grande indignação do Kremlin porque a guerra ideológica com Moscou, nascida em 1956, se ampliara e tomara tais proporções que acabara com a unidade, o monolitismo do campo socialista. Apesar de uma conferência maratona em Moscou, no ano de 1960, apesar de apelos angustiados dos outros “partidos irmãos”, aterrados pelas fendas que se abriam no bloco comunista, o conflito entre Moscou e Pequim perdeu todo o segredo. Trocam-se insultos; bandido, revisionista, escroque, falsário, são termos comumente ouvidos. E de cada lado se apresentam como bom apoio citações de Lênin. Mao Tsé-tung perde o cuidado de camuflar seus sentimentos nos discursos inflamados. Nega a Kruschev e seus adjuntos o menor parentesco com o comunismo ortodoxo, do qual se proclama único herdeiro autêntico e legítimo. Para ele, a Meca do comunismo mudou de lugar: a “Kaaba” do marxismo-leninismo passou das muralhas do Kremlin para a “Cidade Proibida” de Pequim. Kruschev – acusa Mao – faz o jogo dos piores inimigos do comunismo, os “imperialistas capitalistas”; transformou-se no lacaio do seu chefe de fila, os Estados Unidos; é o agente destes, com título igual ao do “renegado” Tito. Kruschev é um homem que deve ser abatido, e a direção do mundo comunista, como a do terceiro mundo, cabe de direito a Mao!

Passaram apenas vinte e quatro horas desde a explosão da bomba “A” chinesa. Nos teletipos das agências de notícias do mundo inteiro, as séries de telegramas urgentes atropelam-se: “A China efetuou a explosão de sua primeira bomba atômica.”

Kruschev foi demitido.”

Há uma extraordinária efervescência nas chancelarias de todos os países, no mundo inteiro. Na “Cidade Proibida” de Pequim, porém, reina a mesma atmosfera de sempre, como se os choques fossem absorvidos por feltro. Mao Tsé-tung, Liu Chao-chi e Chu En-lai, leem o comunicado oficial da embaixada soviética:

“O Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética libertou Nikita Sergueievitch Kruschev de suas funções de Primeiro Secretário do Partido e de Presidente do Conselho de Ministros da URSS. O camarada Brejnev foi nomeado Primeiro Secretário do Partido; o camarada Kossyguine foi nomeado Presidente do Conselho...”

Virou-se mais uma página na história milenar da China.

Fonte: Mao Tsé-tung o imperador vermelho de Pequi, de E. Krieg. Páginas 232 a 238.

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