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terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A HERANÇA MALDITA DE GETÚLIO VARGAS (PARTE 1 DA SÉRIE)

 O insight teórico que fundamenta esse artigo, sobre a hegemonia do Estado sobre a sociedade e o mercado no Brasil, é do cientista político Francisco Ferraz, meu professor no mestrado em Ciência Política da UFRGS, e foi o tema de uma palestra que ele proferiu na aula inaugural dos cursos de Direito e Ciência Política da Universidade Luterana do Brasil em 1997, na qual fui professor por vinte anos.


 


Segundo Ferraz, as nações possuem uma espécie de “matriz genética” que se constitui a partir da sua raiz fundacional combinada com as experiências históricas vivenciadas pelo povo, tal como ocorre com os indivíduos que herdam características genéticas de seus ancestrais e moldam sua personalidade combinando esses traços genéticos com as experiências vividas.


 


Essa configuração forma uma matriz estruturadora do sistema social constituindo uma articulação dos subsistemas econômico, político, social e cultural que é única e específica de cada nação. Esse sistema social possui subsistemas que guardam coerência interna, interdependência, mútuo reforço e tendência a se manter em estado de equilíbrio. Essa matriz se impõe sobre sociedade formando uma estrutura dominante que penetra as outras com a sua lógica e é capaz de alterá-las, dando origem a um molde social que se manifesta através da identidade nacional.


 


A força dessas estruturas é tão marcante quanto é a personalidade de cada indivíduo, de tal forma que mudanças na matriz estrutural das nações são eventos excepcionais na história, não obstante possam ocorrer mudanças conjunturais na organização da política e da economia de cada país. E, tal como acontece com os seres humanos, mudanças profundas na “personalidade das nações” somente acontecem como consequências de traumas e experiências limite.


 


Inspirando-se no conceito weberiano de patrimonialismo, Ferraz afirma que a matriz dominante da sociedade brasileira é o Estado. O patrimonialismo é um híbrido de origem mercantilista que mistura características disformes do feudalismo e do capitalismo e se constituiu como estrutura dominante em nações de capitalismo tardio tal como caracterizou Max Weber em sua análise sobre o papel da burocracia prussiana sobre o Estado alemão.


 


No patrimonialismo, o Estado é o subsistema dominante e indutor do desenvolvimento e sob sua vigência confundem-se, de forma promíscua, as esferas pública e privada. No sistema político, o Estado fixa seus próprios limites de intervenção na vida dos cidadãos e na economia e identifica a política com a ideia do Estado que se torna assim um fim em si mesmo, em oposição à ideia de política como resultado da participação dos cidadãos das decisões coletivas sobre o destino da comunidade.


 


Sob o manto do nacional desenvolvimentismo, setores da direita apresentam zonas de intersecção com o centro e a esquerda numa inusitada convergência na qual não há diferença de visões quando se trata de defender a hegemonia do Estado sobre as liberdades civis e econômicas. Divergem, quando muito, sobre a forma como usá-la para ditar as regras que devem organizar nossas vidas. Para fechar o círculo, as instrumentalidades políticas (golpes, ditaduras, eleições, constituições) estão sempre à mão, disponíveis para assegurar a reprodução e a sobrevivência do paradigma dominante.


 


O conceito de “direita” pode servir à simplificação útil para a guerra política contra a esquerda, mas o que se convencionou chamar de “direita” no Brasil, comporta um espectro de forças contraditórias. O termo “direita” torna-se impreciso se jogamos os conservadores-liberais na mesma “cela” que aprisiona a esquerda junto com os nacionais desenvolvimentistas e os fascistas.


 


Conforme Ferraz, essa configuração estrutural, defendida pela esquerda e por setores da direita, encontra sua expressão no subsistema cultural nacional assumindo a fisionomia clara e ostensiva do paradigma. Assim, o bem comum é visto como objetivo do Estado; a justiça social é responsabilidade do Estado, a soberania nacional é atributo do Estado e a promoção do desenvolvimento é missão e obra do Estado. Na atividade econômica, o trabalho é sinal de inferioridade social, a riqueza é percebida como condição ilegítima e injusta, os juros e o lucro são percebidos como resultado da especulação, da exploração e da ganância, e o sucesso é resultado da sorte, da herança ou de outros fatores desvinculados do trabalho e da competição no mercado livre.


 


Esse paradigma está entrincheirado na mentalidade social e resiste, absorve e metaboliza tentativas de mudanças; rechaça com facilidade e veemência contestações ostensivas, reproduz-se ao longo do tempo e recicla-se em modelos variados.


 


Essa “matriz genética” nacional se constitui num paradigma estrutural cuja configuração é duradoura e capaz de sobreviver ao longo do tempo, ainda que requerendo ajustes demandados por adaptações necessárias aos desafios impostos pelas mudanças históricas. Por vezes, impõem-se mudanças na política e na economia, mas sem nunca abalar as estruturas hegemônicas do paradigma estrutural dominante.


 


O impulso modernizador legado como presente a nós dado pela família real portuguesa com sua chegada ao Brasil, e que marcou a transição do Brasil colônia para a condição de Reino Unido/Império; a era Vargas, o Governo JK, o Regime de 1964, a Nova República as eras PT/PSDB são exemplos dos processos de modernização conservadora sem revolução que mudam o modelo sem mexer no paradigma do Estado hegemônico.


 


De todos esses ciclos de mudança sem mudar, que reforçaram o paradigma estrutural de dominação patrimonialista, a herança mais forte e enraizada na nossa sociedade é a maldição de Getúlio Vargas, materializada na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), legislação que marcou a modernização do mercado de trabalho no Brasil e teve inspiração no fascismo de Mussolini.


 


Vargas tomou o poder através de um golpe de Estado em 1930 liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul; depôs o presidente Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e pôs fim à República Velha. Vargas depôs a maioria dos presidentes estaduais (equivalentes aos atuais governadores); fechou o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais; e, cassou a Constituição de 1891.


 


Parêntesis: observando-se o comportamento de parte da “direita” brasileira no presente quadrante da nossa história, quantos são aqueles que, se pudessem, fariam o mesmo com o STF, o Congresso Nacional e os governadores dos estados?


 


A tentativa de resposta ao golpe de Vargas veio com a Revolução de 1932, um movimento armado liderado a partir de São Paulo, estado onde emergia um forte segmento industrial capitalista que até hoje é a locomotiva da economia brasileira. A Revolução de 1932 visava derrubar Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Vargas, um oligarca rural gaúcho, derrota a tentativa revolucionária e se apropria de sua agenda dando impulso ao mais forte ciclo de modernização econômica e que promoveu a transição do Brasil agrário para o país urbano e industrial sob patrocínio do Estado.


 


Assim nasceu o salário mínimo definido pelo governo e não pela lei da oferta e procura, a Carteira de Trabalho, o direito às férias e décimo terceiro salário, a estabilidade no emprego e os privilégios do funcionalismo público entronizadas na lei, o Imposto Sindical e os sindicatos como órgãos de Estado e as primeiras grandes estatais. Difundiu-se e expandiu-se a partir dali, também, a nefasta cultura da carreira pública como garantia de altos salários, estabilidade e ascensão social fácil, em geral conquistada por jogos de influência, trocas de favores e compadrio político.


 


As novas gerações não fazem ideia de quem foi Getúlio Vargas, cuja memória hoje só é cultuada por dois decadentes partidos políticos (PTB e PDT) e relembrada em propagandas eleitorais saudosistas de um passado cujo retorno é impossível num mundo dominado por tecnologias pós-industriais, por uma economia de riqueza intangível e pelo empreendedorismo individual.


 


Nos EUA, país no qual a “matriz genética” da nação é hegemonizada pela sociedade e pelo mercado, onde a ascensão social resulta do esforço empreendedor dos indivíduos na livre iniciativa, a arrancada capitalista que fez desse país a potência que é, decorreu do trauma da Guerra Civil que ceifou a vida de quase um milhão de norte-americanos e removeu do poder as oligarquias agrárias sulistas, domadas pela força política do norte industrial que removeu os obstáculos para a afirmação do capitalismo naquele país.


 


Como afirma o professor Ferraz, o trauma da derrota na II Guerra Mundial preparou o terreno para a “reconstrução” com base em princípios, valores, práticas e instituições democráticas ocidentais da Alemanha e do Japão. Na Rússia agrária czarista, o insucesso militar na I Guerra Mundial e a crise econômica profunda pavimentaram o caminho para a revolução bolchevique e a “nova ordem” soviética que industrializou a nação. A ocupação militar da China pelo Japão preparou o terreno para a revolução camponesa do PCC de Mao Tse Tung e a implantação do socialismo que patrocinou a transição da era agrícola dos mandarins para a China moderna. No Japão, a reação defensiva à pretensão colonialista ocidental tomou a forma da Era Meiji que modernizou a sociedade japonesa.


 


O Brasil nunca viveu traumas históricos da magnitude dos exemplos acima citados. A crise econômica profunda que se avizinha como decorrência da pandemia do Covid 19 talvez venha a ser o nosso primeiro trauma social com força política para provocar a ruptura do paradigma da dominação do Estado sobre a sociedade e o mercado.


 


Já assistimos a falência do Estado decorrente da ordem gerada pela Constituição de 1988 e agravada pelo desastre fiscal dos governos PT. Não obstante, a dominância do Estado ficou intocada e resistimos como uma das economias mais fechadas do mundo às pressões externas desestruturadoras e reestruturadoras dos mercados provocadas pela globalização da economia.


 


Os avanços modernizadores parciais patrocinados pelos governos Collor (privatizações e abertura da economia) e FHC (privatizações e quebra de monopólios estatais) foram respondidos com o contra-ataque do estamento patrimonialista que se materializou no impeachment de Collor, e depois, na ascensão do petismo ao poder.


 


Com Temer e sua “Ponte para o Futuro” experimentamos uma insipiente volta do “liberalismo econômico” expresso na Reforma Trabalhista, no fim do Imposto Sindical e na aprovação do teto de gastos num contexto de instabilidade institucional de um governo apoiado por uma base parlamentar ameaçada pela Lava-Jato. A reação do estamento patrimonialista se manifestou com a inviabilização da Reforma da Previdência através de um golpe branco articulado por uma aliança tácita entre o Ministério Público e a Rede Globo.


 


A eleição de Bolsonaro num movimento de resposta ao ciclo de poder petista emergiu com a invasão da cena política por forças sociais contraditórias que configuraram uma inusitada articulação entre liberais, conservadores e segmentos nacionais desenvolvimentistas. Assistimos, pela primeira vez na nossa história o surgimento inédito de bases sociais para a defesa do liberalismo e do conservadorismo com “cara política” própria no Brasil.


 


O tecido social desse movimento que derrubou Dilma, tirou o PT do governo e elegeu Bolsonaro é composto preponderantemente de segmentos de classe média e classe média baixa constituído por profissionais liberais, empresários de diferentes tamanhos, autônomos e trabalhadores informais cuja sobrevivência, salvo raras exceções, está na iniciativa privada, ou seja, gente cuja atividade econômica gera a riqueza, os empregos e os impostos que financiam o Estado que os exclui e oprime. Nos termos de Antônio Gramsci, um autêntico “bloco histórico”.


 


Nesse exato momento vivenciamos mais um embate entre essas forças sociais, econômicas e políticas emergentes que querem libertar a nação do jugo do Estado hegemônico e as forças da reação patrimonialista, algumas das quais alojadas dentro do próprio governo.


 


Hoje, como consequência de seus erros, Bolsonaro vê sua base social mudar. Setores do empresariado e da classe média que apoiaram sua eleição se afastam do governo, mas o presidente compensa essa perda penetrando nos extratos de mais baixa renda da população, especialmente no Nordeste, como consequência das políticas provisórias de socorro aos desvalidos da pandemia.


 


Os gastos decorrentes do combate à pandemia do Covid 19 e ao socorro econômico a indivíduos e empresas já consumiram mais do que a economia proporcionada pela recém aprovada Reforma da Previdência. Amplos segmentos sociais estão e estarão sustentados às custas de déficit público recorde, endividamento sem precedentes e alto risco hiper inflacionário combinado com a destruição de empresas e empregos, numa proporção nunca experimentada pelo povo brasileiro.


 


A ruptura com a herança patrimonialista e a cultura herdada do getulismo bate à nossa porta pedindo passagem. Mas o estamento patrimonialista surfa a onda da pandemia para, mais uma vez, tentar derrotar o esforço modernizador do governo eleito para promover a mudança. O STF e o Congresso Nacional dão cara política à reação, mas o governo, como já dito, também tem em seu interior a contradição capaz de minar a vitória da Liberdade.


 


Venceremos?


 


Artigo de Paulo Moura e Francisco Ferraz



MUDAR TUDO PARA QUE NADA MUDE: O PADRÃO BRASILEIRO DAS REVOLUÇÕES SUFOCADAS (PARTE 2 DA SÉRIE)



A história é um processo dinâmico movido pela atividade política dos seres humanos, por vezes atropelada e desviada do seu rumo pelo acaso. A roda do progresso é movida pela nossa ambição de viver melhor e vai engendrando mudanças que, de tempos em tempos, põem em xeque as estruturas sociais de períodos históricos inteiros, impondo a necessidade de transformações que reacomodem as forças sociais nas relações de poder nascidas com as novas realidades.


 


As ideias e os valores disruptivos movem os indivíduos visionários que lideram os processos de mudança criando fatos que se impõem pela força das ideias quando essas se encontram com seu tempo. A realidade concreta movida pela ação humana caminha na frente. As instituições e as leis correm atrás; precisam se adaptar e mudar sob pena de se tornarem obsoletas e serem atropeladas.


 


Períodos de transição são tempos de instabilidade em que a nova ordem ainda não se impôs, ao mesmo tempo em que as instituições da velha ordem já não respondem mais às funções para que foram criadas.


 


O mundo experimenta um tempo assim. A mudança se impõe como resultado do impacto das novas tecnologias de comunicação, pelo tráfego imensurável das transações digitais intangíveis que não encontram fronteiras, e pela gigantesca quantidade de pessoas e riquezas que se deslocam pela superfície do planeta num volume e numa velocidade nunca experimentados. O Brasil, ao seu modo, é parte dessa mudança, sob pressão dessa dinâmica externa em interação com demandas da nossa própria realidade.


 


A história testemunha que as nações que vivenciaram as experiências mais radicais de transição entre tempos históricos e as consequentes transformações das suas estruturas institucionais, acompanhando o espírito do tempo, são aquelas que primeiro avançam e mais longe vão na direção do progresso e da prosperidade, ou do retrocesso. Vejamos alguns exemplos:


A Guerra Civil Norte-Americana representou o fim da era dominada pelas oligarquias rurais da sociedade sulista e sua força política removeu os obstáculos para a afirmação do capitalismo nos EUA. Já a grande depressão decorrente da quebra da Bolsa de Nova Iorque de 1929 preparou o caminho para o New Deal.

As derrotas militares e a rendição incondicional da Alemanha e Japão na II Guerra Mundial criaram as condições para a “reconstrução” da nação com base em princípios, valores, práticas e instituições democráticas ocidentais.

O insucesso militar russo na I Guerra Mundial e a crise econômica daí decorrente pavimentaram o caminho para a revolução bolchevique e a “nova ordem” soviética.

A ocupação militar da China pelo Japão preparou o terreno para a revolução camponesa do PCC de Mao Tse Tung, a implantação do socialismo e a reconstituição da nação como potência “imperial”.

A reação defensiva do Japão à pretensão colonialista ocidental que tomou a forma da Era Meiji modernizou a sociedade japonesa e transformou-a no que é hoje.

A roda da história, como se pode ver, e ao contrário do que sugere uma visão do tempo que supõe a humanidade marchando inexoravelmente para um futuro melhor e mais próspero, mostra que, por vezes essas experiências de ruptura podem levar às sociedades ao retrocesso e ao obscurantismo. As experiências totalitárias do nazismo, do fascismo e do comunismo, em pleno século XX, são exemplos disso.


 


Todos os casos acima listados são exemplos de rupturas históricas por vias traumáticas, resultantes de guerras, revoluções ou profundas crises. O Brasil parece ser um caso à parte dentre as nações do mundo. Aqui desenvolveu-se um modelo original de transição modernizadora sem traumas. Historiadores e cientistas sociais cunharam as expressões “modernização conservadora” e “transição por cima” para definir essa experiência que se revela um padrão que se repete.


 


Nosso primeiro impulso modernizador resultou de um presente da Coroa Portuguesa quando da vinda da Família Real do Brasil. Nossa segunda experiência, a declaração da Independência, ao contrário dos EUA onde a ruptura do cordão umbilical da nação foi conquistada pela guerra civil contra os colonizadores ingleses, foi “de pai para filho” e está longe de representar um processo traumático de transição histórica.


 


Nossa proclamação de República, por sua vez, não resultou de uma insurreição popular contra a coroa, aos moldes da Revolução Francesa, mas sim, de um golpe de estado promovido por militares conspiradores movidos por razões até hoje controvertidas e mal explicadas.


 


O fim do flagelo da escravidão negra no Brasil também não pode ser caracterizado como resultado de uma rebelião massiva dos escravos contra seus dominadores. Por mais que a esquerda queira reescrever a história, as eventuais resistências quilombolas jamais tiveram força política e militar capaz de produzir um resultado que adveio mais como concessão da Coroa em função das pressões externas da Inglaterra sobre Portugal do que por qualquer outra causa intrínseca.


 


Nosso processo de urbanização, industrialização e modernização “capitalista”, se é que o termo se aplica, decorreu de uma contrarrevolução comandada por um oligarca rural (Getúlio Vargas) apoiado pela elite militar do Rio Grande do Sul, que sufocou aquilo que poderia ter sido uma autêntica revolução liderada por São Paulo, desde sempre a locomotiva da modernização econômica da nação. Ao derrotar os paulistas Vargas apropriou-se de agenda da revolução e modernizou o país “por cima”, sob comando dirigista do Estado e cooptando as forças sociais de modo a conter a mudança pela ruptura.


 


Antes disso a experiência brasileira com tentativas de insurgência revolucionária contra o poder central do Estado Nacional revela uma sucessão de fracassos. O Rio Grande do Sul, o estado mais armado da nação devido às guerras de fronteira dos séculos passados, que se insurgira contra o Império na Revolução Farroupilha de 1835; foi derrotado. A Inconfidência Mineira (1789); a Cabanada (1832/1835); a Revolta do Malês (1835); a Balaiada (1838/1841) e a Guerra de Canudos (1887) compõem uma considerável lista de rebeliões sufocadas a testemunhar a dificuldade de mudar o país pela via revolucionária.


 


Por outro lado, a era Vargas; o governo Juscelino Kubitschek; o Regime Militar de 1964; a Nova República; o Impeachment de Collor e as eras FHC e Lula/Dilma testemunham, em sentido oposto, diferentes arranjos institucionais através dos quais as elites patrimonialistas reconfiguraram as alianças no poder e promoveram a modernização demandada pelas pressões dinâmicas das suas épocas, sem nunca remover os verdadeiros donos do poder de suas posições dominantes.


 


Nesse exato momento o Brasil se encontra em nova encruzilhada histórica da mesma natureza. O capitalismo digital impõe a mudança e um novo ciclo de modernização da economia e das estruturas políticas. As forças sociais emergentes da nova economia, que lideram a mudança por fora das estruturas do Estado, aspiram chegar ao poder sem, no entanto, apresentarem organização, experiência e maturidade políticas para a envergadura da missão.


 


A ofensiva difusa que começou dispersa e sem foco em 2013, ganhou foco em 2015 e 2016 no impeachment de Dilma, e rumo em 2018 com a eleição de Bolsonaro parece estar encontrando seus limites. Chegamos ao governo por um atalho da história, mas não conquistamos o poder de fato.


 


A casta dos donos do poder esperou pacientemente o esgotamento do fôlego revolucionário das ruas e, valendo-se das quarentenas da pandemia e de suas posições de jogo no aparato do Estado (Congresso e STF), articula a reação objetivando travar a mudança e impedir seu curso de modo a garantir seus privilégios e poder.


 


As ações da atual elite patrimonialista, ao contrário do que aconteceu com Vargas, JK e os militares de 64, que representaram projetos políticos com o objetivo e rumo, são apenas reacionárias. Sua cara é o centrão, sua agenda é barrar a mudança; sufocar seus líderes e derrubar o presidente que se elegeu surfando a onda da transformação.


 


Historicamente, os militares, que sempre fizeram parte dos pactos de “transição por cima”, vivem a ambiguidade de quem é parte da elite patrimonialista mas, ao mesmo tempo, estuário receptor das esperanças de compromisso com a mudança por parte de um povo desarmado, desorganizado, inexperiente, sem liderança à altura do desafio, e, até o momento, incapaz de mostrar a força necessária para promover o impulso transformador, de baixo para cima, conforme suas aspirações.


 


Ante a ausência de líderes à altura de protagonizar a mudança histórica, o movimento reacionário da casta patrimonialista prepara o bote; o golpe final para sufocar o ímpeto de mudança. Os fatos da conjuntura são evidentes a testemunhar o que digo e dispensam uma lista descritiva.


 


Os reacionários não necessitam de líderes ou estadistas. Movem-se como ratos e répteis esquivando-se pelos porões do poder em conspirações contra a mudança, camufladas pela sucessão de fatos aparentemente desconexos que a maioria não percebe em seus nexos causais, como peças de uma engrenagem em movimento de marcha à ré; partes de um quebra-cabeças sendo montado cuja imagem inteira somente é perceptível ao observador atento, ou aos donos do tabuleiro.


 


Artigo de Paulo Moura e Francisco Ferraz



QUAL A CARA DA NAÇÃO BRASILEIRA? (PARTE 3 DA SÉRIE)



As pistas do que o leitor vai encontrar aqui como resposta ao desafio da Bruna Torlay para falarmos sobre a identidade cultural brasileira já foram dadas em dois artigos anteriores que escrevi para a Revista Esmeril: “A herança maldita de Getúlio Vargas”, e, “Mudar tudo para que nada mude: o padrão brasileiro das revoluções sufocadas”.


 


No artigo intitulado “A herança maldita de Getúlio Vargas”, que escrevi para a edição de maio, antecipei o esquema teórico que orienta minha análise estrutural da política brasileira da seguinte forma:


 


“Segundo Ferraz*, as nações possuem uma espécie de “matriz genética” que se constitui a partir da sua raiz fundacional combinada com as experiências históricas vivenciadas pelo povo, tal como ocorre com os indivíduos que herdam características genéticas de seus ancestrais e moldam sua personalidade combinando esses traços genéticos com as experiências vividas.


 


Essa configuração forma uma matriz estruturadora do sistema social constituindo uma articulação dos subsistemas econômico, político, social e cultural que é única e específica de cada nação. Esse sistema social possui subsistemas que guardam coerência interna, interdependência, mútuo reforço e tendência a se manter em estado de equilíbrio. Essa matriz se impõe sobre sociedade formando uma estrutura dominante que penetra as outras com a sua lógica e é capaz de alterá-las, dando origem a um molde social que se manifesta através da identidade nacional.” (*Francisco Ferraz, cientista político, criador do Pós-graduação de Ciência Política da UFRGS e ex-reitor da mesma universidade.)


 


Tomando por base essa referência, trata-se aqui de mergulhar de forma mais detalhada no “subsistema cultural” da nossa matriz genética patrimonialista. Segundo esse ponto de vista, a característica mais marcante dessa nossa “personalidade nacional”, que engendrou a nação a partir da experiência da descoberta e colonização, combinada com os fatos históricos que sucederam a origem da nação, é a presença dominante do “subsistema Estado” sobre os demais subsistemas sociais, dentre os quais o cultural.


 


Como nós brasileiros entendemos os conceitos de “bem comum”; de “justiça social”; de “soberania nacional”, de “desenvolvimento social”; de “atividade econômica”; de “trabalho”, de “riqueza”; de “juro”, de “lucro”, e finalmente, de “sucesso”.


 


Para melhor me fazer entender, peço licença ao leitor para comparar esse conjunto de conceitos em contraste à forma como são percebidos pelos norte-americanos. Essa escolha é apenas um recurso didático para melhor me fazer compreender e está isenta de juízo de valor sobre o que diferencia as identidades nacionais de ambas as nações.


 


Os EUA e o Brasil foram “descobertos” em momentos históricos próximos: ambos são países de dimensões continentais; receberam colonização multiétnica, viveram a chaga da escravidão e declararam suas independências em momentos também muito próximos.


 


As duas experiências, no entanto, resultaram em nações muito diferentes uma da outra, praticamente opostas no que diz respeito ao paradigma estruturante de ambas as sociedades e, como não poderia deixar de ser, ao subsistema cultural que integra seus ecossistemas sociais.


 


Nos EUA a formação do estado nacional resultou de um processo de ruptura violenta com o colonizador. Os colonos americanos eram indivíduos que migraram para o novo mundo fugidos da perseguição política e religiosa. Vieram em busca de liberdade, para fundar uma nação de “homens livres”, portanto.


 


A riqueza da nação resultou do trabalho empreendedor de indivíduos e famílias que, de armas em punho, desbravaram o território e constituíram suas propriedades. A vida comunitária e criação das instituições políticas, jurídicas, sociais e culturais ocorreu em decorrência e por necessidade evolutiva da vida econômica erigida sob essas condições.


 


O surgimento das cidades, a eleição de um xerife, de um juiz e de um prefeito, a construção de igrejas e “saloons” ocorreu, então, como decorrência da forma como o território foi ocupado e de como a vida se organizou a partir das propriedades rurais e da atividade mineradora, que dependem de transporte e de vida urbana para o desenvolvimento do comércio.


A religião predominante entre os colonos era o protestantismo que, como Max Weber descreveu em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, vê a riqueza como recompensa de Deus em vida pelo esforço empreendedor. E, no contexto da forma como os EUA se constituíram, o trabalho que se executava nas propriedades rurais e nas minas, e que gerava a riqueza individual e das comunidades era o trabalho braçal, em primeiro lugar.


 


Portar armas para proteger a vida, a família e a propriedade, e inclusive, para defender-se da tirania dos governantes, sob as circunstâncias históricas em que os EUA nasceram, se desenvolveram e conquistaram sua independência, é um direito culturalmente percebido pelo povo como tão natural quanto o direito à vida, à liberdade e à propriedade privada.


 


Assim como vida, família e propriedade são protegidos por cidadãos armados até hoje, a independência dos EUA e o fim da escravidão naquele país também resultaram de luta armada.


 


Assim como a vida comunitária e as instituições surgiram como decorrência e necessidade do processo evolutivo da economia, a federação surgiu como resultado da união voluntária dos estados em uma nação única, nasceu por deliberação e escolha plebiscitária do povo, razão pela qual o país se chama de “Estados Unidos”.


 


Como decorrência desse processo fundacional e das experiências vividas pelo povo americano, nos EUA o “bem comum” é percebido como resultado da vida em comunidade e da participação dos cidadãos nas instituições jurídicas, políticas, sociais e culturais. Por paradoxal que pareça a uma nação que cultua o individualismo, o povo norte-americano possui uma intensa e valorizada vida comunitária.


 


Ser “socialmente justo” para o povo norte-americano é respeitar as conquistas individuais. Amparar os desvalidos e aqueles a quem a vida não concedeu o dom do empreendedorismo é missão do indivíduo que socorre os necessitados com ações caritativas individuais ou promovidas por entidades privadas mantidas com doações de membros da comunidade.


 


O enriquecimento da nação e seu desenvolvimento econômico e social são percebidos como algo que resulta da combinação aleatória, no mercado, do conjunto de esforços individuais dos empreendedores. A defesa da nação e da sua soberania e pujança, nesse contexto, é algo percebido como missão do povo.


 


Na atividade econômica, não há distinção entre a forma como são valorizados o trabalho braçal e o trabalho intelectual. Enriquecer como resultado da atividade empreendedora é visto como algo natural e desejável, para o que, os filhos são educados, de preferência para viver do lucro de algum negócio.


 


Lucrar com investimentos e receber rendimentos de aplicações financeiras é tão óbvio e desejável que os americanos são educados para isso desde cedo. O sucesso é admirado e visto como recompensa pelo trabalho e pela atividade empreendedora bem sucedida.


 


Pode-se dizer que os mesmos valores têm sentido oposto para os brasileiros. Praticar o bem comum, notadamente na política, é algo percebido como objetivo do Estado. O senso do que é justiça social, está associado à ideia socialista da perseguição da igualdade econômica como algo que é responsabilidade do Estado.


 


A promoção do desenvolvimento econômico, que nos EUA resulta da pujança da iniciativa privada e do mercado, no Brasil é algo percebido com missão e obra do Estado. Da mesma forma é percebida a defesa da soberania nacional como atributo do Estado.


 


Na atividade econômica, o trabalho, notadamente o trabalho braçal, é visto como sinal de inferioridade social. O diploma universitário, mais do que uma conquista pelo mérito de quem buscou o conhecimento, é visto como privilégio e sinal de superioridade social. A riqueza, especialmente aquela obtida como resultado do esforço empreendedor, é alvo de “mau olhado” e vista como condição ilegítima e injusta.


 


O juro ou o rendimento do investimento capitalista é visto pejorativamente como especulação e não como recompensa pelo risco de empreender. O lucro, por sua vez, é percebido como resultado da exploração, e da ganância. E, finalmente, o sucesso é percebido como resultado da sorte, da herança ou de outros fatores desvinculados do trabalho e do risco.


 


Todas essas características culturais da nação têm origem na nossa matriz “genética” patrimonialista, que nos legou a noção de que riqueza é algo que se tira na natureza, do Estado ou dos outros e não que se constrói como resultado do trabalho empreendedor.


 


Herdamos da nossa experiência histórica cartorial a ideia de que a ascensão social e econômica é algo que se adquire como resultado de relações de compadrio e que o privilégio obtido pela via das relações políticas com os detentores dos poderes de Estado é direito adquirido e moralmente defensável.


 


A distância que separa a aceitação dessas imoralidades como algo “normal”, em relação à prática da corrupção propriamente dita, é milimétrica, quase imperceptível.


 


Tenho certeza de que o leitor, especialmente ao testemunhar o que se passa nesse momento no Rio de Janeiro, nossa antiga capital, me dará razão e concordará que todos esses traços culturais fazem parte da nossa “identidade nacional”.


 


Mas seria injusto resumir o brasileiro a esse amontoado de imoralidades auto justificadas. A cultura de uma nação não é algo estático, imune à influência das mudanças históricas e às trocas com outras culturas.


 


Há um Brasil empreendedor, capitalista e meritocrático se constituindo à margem e em luta contra o outro Brasil que vive de parasitar o Estado e a riqueza alheia. Não fosse isso não existiria São Paulo, construída com o suor de brasileiros empreendedores de todos os cantos, inclusive e especialmente do Nordeste de onde vem um povo ao qual se atribui o pouco gosto pelo trabalho.  Não haveria as regiões metropolitanas das capitais e grandes cidades.


Não haveria o agronegócio mais pujante e competitivo do mundo.


Não haveria, igualmente, esses mais de 40 milhões de empreendedores informais que vivem suas vidas sociais e econômicas totalmente à margem do Estado. Falo dos brasileiros que somente foram descobertos e “cadastrados” nos registros oficiais do governo em função do pavor que uma eventual rebelião das vítimas das quarentenas da pandemia causou no Brasil dos parasitas.


 


O fechamento da economia foi invenção autoritária abraçada com prazer pelo Brasil com estabilidade no emprego, que vive às custas do outro Brasil, capitalista, que vive do risco e não tem proteção do Estado nem privilégios obtidos pelo compadrio com os donos do poder.


 


Mesmo sem dados objetivos para avaliar, atrevo-me a dizer que São Paulo é onde a desobediência civil do Brasil empreendedor impôs a reabertura da economia mais cedo e com mais força. O dito isolamento social em São Paulo hoje, só está em vigor no setor público ou imposto pelos sindicatos do ensino particular.


 


As atividades empreendedoras estão praticamente normalizadas. As “autoridades” mantém a farsa das quarentenas e a retórica das aparências, mas não têm coragem de impor novo fechamento, creio eu, mesmo se houver a propalada segunda onda de contágio do vírus.


 


O Brasil está mudando a partir de um processo que começou disperso e confuso em 2013, adquiriu sentido em 2015, e rumo em 2018.


 


Por baixo das disputas de poder e dos fatos da conjuntura que acompanhamos pelo noticiário (conflitos e disputas por cargos e acesso às chaves dos cofres públicos, escândalos de corrupção, tentativas espúrias de depor o presidente eleito), está em curso uma mudança cultural subterrânea que antecede a todas as revoluções na História.


 


O conteúdo de fundo dessa mudança se dá em torno de uma guerra de valores morais entre o Brasil capitalista, empreendedor e que vive do seu próprio trabalho e da riqueza adquirida pelo mérito, contra o Brasil patrimonialista, da ascensão social e dos privilégios obtidos pelo compadrio e pela expropriação ilegítima da riqueza dos outros.


 


Que cara queremos ter? Que marca queremos deixar como legado para nossos filhos e netos?


 


Artigo de Paulo Moura e Francisco Ferraz


 



Pontocritico.com

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