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A viagem ao secreto país de Kin Jong-Un

Correio do Povo esteve na Coreia do Norte e pôde conferir de perto as contradições da nação mais misteriosa do mundo

No interior do país, a precariedade e a miséria que o regime esconde do mundo | Foto: Alexandre Aguiar / Especial / CP

No interior do país, a precariedade e a miséria que o regime esconde do mundo | Foto: Alexandre Aguiar / Especial / CP


Alexandre Aguiar


Era madrugada de terça-feira no Brasil quando o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, e o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, desfilaram juntos em carro aberto pelas ruas de Pyongyang, para o delírio de multidões nas calçadas e sacadas de apartamentos que acenavam com flores e gritos de “reunificação”. Dias antes, percorremos as mesmas ruas e avenidas da capital norte-coreana, que já antecipavam uma nova atmosfera na península, em uma prévia da terceira cúpula entre os chefes de governo. O encontro resultou em novos acordos para redução de riscos de enfrentamentos militares nas áreas de fronteira, projetos de conexão de rodovias e ferrovias, controles de saúde e até uma candidatura conjunta para os jogos olímpicos de 2032.
Sete de setembro, 16h30min, Pequim. A estação férrea central da capital da China é um formigueiro humano, um retrato do país mais populoso do planeta. Pessoas se amontoavam em filas e esperavam sentadas ou deitadas no piso pelos seus trens. Dali, da plataforma 4, iniciaria, pelos vagões da linha K37, a nossa jornada de trem de 24 horas até a capital da Coreia do Norte, o país mais fechado e misterioso do mundo, com o pior histórico de direitos humanos.
Depois de uma noite passando por várias médias e grandes cidades chinesas com torres de edifícios iluminadas e uma infinidade de prédios em construção, símbolos da pujança chinesa, alcançou-se Gandong, a última localidade antes da fronteira. Após pouco mais de uma hora e controles de imigração, o embarque. Da estação de Gandong até a ponte que separa a China da República Popular e Democrática da Coreia, o nome oficial da Coreia do Norte, foram apenas dois minutos. Sob o barulho de pirotecnia, de festa local no lado chinês, o trem avançava lentamente pela ponte. Em um piscar de olhos, a China estava para trás e estávamos em solo norte-coreano. Se, do lado chinês, o horizonte trazia uma grande cidade tomada de edifícios, a primeira imagem da Coreia do Norte foi a de um calçamento novo à beira do rio e um parque de diversões em estado de quase abandono.
Primeira estação, primeiro contato com os norte-coreanos. Militares ingressam em cada cabine em uma rigorosa revista, recolhendo as guias de imigração e aduana. Nelas, sinal da preocupação de segurança e de controle de informação, a necessidade de informar se leva na bagagem GPS, câmeras e publicações. Bíblias e outros livros religiosos, câmeras com lentes mais potentes e publicações sul-coreanas ou de conteúdo político contrários ao regime são proibidos. Os militares que fazem a revista nada encontram de proibido e se limitam a celulares e câmeras. Com inglês pobre, a cada declaração de Iphone de passageiro, repetem em voz alta “Apple, Apple”.
Superada a fronteira, a viagem de algumas horas até Pyongyang é de absoluta curiosidade e olhos fixos na paisagem que se oferece pela janela do trem. Vilarejos, pequenas cidades e muitas lavouras. Ao fim de tarde, com o céu já alaranjado pelo ocaso, surgem edifícios mais altos e no horizonte e uma enorme edificação em formato triangular. Estava em Pyongyang. O destino final havia sido alcançado. Na saída da estação, após a recepção pelos guias locais, uma praça com um telão exibindo propaganda do regime. A ficha caiu: estava na Coreia do Norte!


A Coreia que não querem que vejam

Há duas Coreias do Norte. A que o regime faz questão que você veja, a cosmética, e a que ele não quer que você testemunhe. Pyongyang, maior cidade da Coreia do Norte e Capital, é o que o cartão de visitas do regime. Ruas e avenidas largas, impecavelmente limpa, segura, parques e praças que impressionam pelo cuidado e beleza, parques de diversões, muitas instalações esportivas de invejar, edifícios modernos e estátuas, muitas estátuas e monumentos homenageando os “grandes líderes”. Nas ruas, homens em trajes quase idênticos e mulheres bem vestidas, algumas elegantemente.
O comércio é quase imperceptível e se constata pelos vidros de lojas em andares térreos dos muitos blocos de apartamentos de estilo soviético, pintados de diferentes cores, em que se pode ver a presença de roupas e outros produtos no interior. A maioria é de pequenos mercados que oferecem comida e gêneros domésticos. Nada de painéis ou placas exibindo nomes de estabelecimentos. Aos olhos pouco atentos, é como se Pyongyang não tivesse comércio. O maior que vimos foi o que os norte-coreanos descrevem como uma “loja de departamentos”, mas que não passa de um supermercado no primeiro piso e um bazar com roupas e produtos para o lar no segundo andar, ao qual se chega por escadas rolantes. Na entrada, junto à segunda mais larga avenida da cidade, um enorme telão exibindo propaganda do regime.
 


 Em Pyongyang, opulência e arquitetura moderna na sede do poder

Em Pyongyang, opulência e arquitetura moderna na sede do poder

Pyongyang é a cidade da elite, do partido e do topo da sociedade, formado por militares, cientistas do programa nuclear que desenvolveram a bomba atômica e os mísseis e professores da universidade. A eles foram reservados novos e grandes edifícios de apartamentos com arquitetura que impressiona. Um deles, na recém-inaugurada Rua Ryomyong, de torres residenciais modernas, lindas no exterior e que no interior sequer os elevadores funcionariam, há o desenho de um átomo na fachada. À noite, iluminados e em neon, oferecem uma visão que impressiona. O grande destaque do skyline de Pyongyang é um arranha-céu em formato de pirâmide, de 105 andares, em construção desde 1987. Inacabado e desabitado, o hotel Ryugyong se ilumina a noite em um show de luzes que exibe a bandeira nacional.

Vias liberadas, Pyongyang conta com trânsito organizado

Vias liberadas, Pyongyang conta com trânsito organizado

O trânsito é o sonho de qualquer motorista. Pelas espaçosas vias quase não passam carros. São poucos, mas em número superior a anos recentes. As famosas traffic ladies de Pyongyang, mulheres que fazem uma coreografia para orientar o trânsito, não raro inexistente, são uma atração. A população se move por ônibus, metrô (o mais profundo do mundo, que serve de abrigo nuclear) e trólebus. Muitos, porém, ou caminham ou andam de bicicleta.

Traffic ladies em frente a uma da tantas propagandas do regime na capital da Coreia do Norte

Traffic ladies em frente a uma da tantas propagandas do regime na capital da Coreia do Norte

Saindo da capital, no Interior, não há a maquiagem de Pyongyang. É a Coreia do Norte que Kim Jong-un não quer aos olhos do mundo e que somente foi possível ver porque estávamos desacompanhados em um trem, sem a vigilância e controle constantes do governo. Vilarejos raramente têm pavimentação. Pequenas e médias cidades são formadas basicamente por casas simples e blocos de apartamento de até seis andares, em regra em mau estado de conservação. Vários com placas de energia solar nas janelas, em um país com cortes recorrentes luz.
A paisagem a partir do trem da fronteira a Pyongyang revelou baixa densidade urbana e muitas lavouras, de arroz e milho.
Agricultura primitiva, com uso de tração animal e pouco maquinário. Os poucos tratores eram pequenos e muito antigos. Em arroios e rios, alguns poluídos, adultos e crianças se banhavam ou lavavam roupas e louça. Em uma estação de trem, crianças realizavam trabalho de manutenção do piso. Galpões e fábricas na maioria desertos. Sem fumaça saindo da chaminé.
Carros são ainda mais raros no Interior e pessoas andavam pelas ruas e margens da linha férrea a pé ou de bicicleta. Em três horas de ônibus na estrada em péssimo estado entre Pyongyang e a zona desmilitarizada (DMZ) na fronteira com a Coreia do Sul, não chegou a dez o número de veículos no sentido oposto da rodovia. Nas estações de trem, quase nenhuma movimentação e os poucos vagões que se viu carregavam apenas carvão e lenha. Em alguns momentos é como se estivéssemos em uma terra abandonada. Sem carros, sem gente, sem vida.

No interior, precariedade e miséria que o regime esconde do mundo e o Correio do Povo registrou

No interior, precariedade e miséria que o regime esconde do mundo e o Correio do Povo registrou


Mass games, um espetáculo único e de propaganda


Na noite da última quarta-feira, o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, compareceu aos Mass Games, um espetáculo de ginástica, acrobacias, danças e um mosaico humano formado por 18 mil pessoas que alterna centenas de imagens como se fosse uma tela gigante. Cerca de 150 mil pessoas ovacionaram de pé Moon, que entrou no estádio ao lado do líder norte-coreano. Depois de uma hora de apresentações, o presidente sul-coreano se tornou o primeiro mandatário do Sul a falar para a população do Norte, pregando o fim de décadas de hostilidades.
“Vivemos juntos por 5 mil anos, mas separados por 70. Aqui proponho que resolvamos 70 anos de conflitos e tomemos os grandes passos da paz para nos tornarmos um de novo. Vamos caminhar para o futuro juntos”, disse Moon ao estádio lotado.
Foi na noite de 9 de setembro, depois de cinco anos sem edições, que retornaram os Mass Games. Estávamos lá, na tribuna quase ao lado da presidencial, a não mais que 40 metros do ditador norte-coreano. Quando Kim Jong-un ingressou no estádio, o que se viu foram cinco minutos de aplausos de pé e gritos emocionados do público presente, quase todo ele de militares. A segurança era enorme. Nem celular, nem câmera, nem mesmo a chave do quarto do hotel era permitida aos estrangeiros. Foi preciso retornar na segunda noite para registrar em fotos e vídeos o espetáculo.
Sob o título “País Glorioso”, a apresentação deste ano foi muito mais tecnológica que a de 2013, intitulada Arirang. Envolveu laser e dezenas de drones no céu formando frases e a bandeira nacional, o que levou a multidão ao delírio. A grande diferença, porém, foi o tom. Há cinco anos era de confrontação. Desta vez, no final do show, foram exibidas as imagens do primeiro encontro entre os líderes coreanos, no outono, seguidas pela figura de um aperto de mãos no mosaico humano e frases em inglês como relações multilaterais e paz.


 Balões, buquês de flores e milhares de pessoas nas ruas de Pyongyang para saudar os militares

Balões, buquês de flores e milhares de pessoas nas ruas de Pyongyang para saudar os militares

O show impressiona. Tem a grandiosidade de uma abertura de jogos olímpicos, contudo é único pelo mosaico humano de sincronia quase inverossímil e o forte conteúdo político. É a face mais visual da maciça estrutura de propaganda do regime. Uma demonstração do país aos seus cidadãos e ao mundo, mas que não escapa das críticas. Grande número de crianças participa do show e os treinamentos são exaustivos, o que gerou fortes críticas de entidades de direitos humanos.  Na saída do Estádio Primeiro de Maio, o ônibus em que estávamos cruzou pela multidão de norte-coreanos que deixava o espetáculo. Os acenos eram efusivos. Não foi possível resistir e abrimos as janelas do ônibus para retribuir o carinho espontâneo. Como se nós, estrangeiros presentes, fôssemos pop stars. Nenhuma imagem foi tão impactante para mim naquela noite como os sorrisos e a graça de milhares de pessoas, adultos e inúmeras crianças, me saudando somente por estar ali. Após duas horas de um show de propaganda milimetricamente coreografado, foi um mergulho em um espetáculo de humanidade espontâneo e genuíno

Militares eufóricos acenam para a multidão nas ruas na parada da manhã do Dia Nacional

Militares eufóricos acenam para a multidão nas ruas na parada da manhã do Dia Nacional

Imagine um país em que clássicos da música internacional como Beattles, Rolling Stones ou Michael Jackson jamais foram ouvidos pela população. Imagine que filmes famosos do cinema como ET ou Titanic nunca tenham sido vistos. Que celulares só façam ligação para o próprio país. E que a comunicação nas redes é só por uma intranet governamental, sem acesso ao resto do mundo. Facebook, Instagram, Twitter, WhatsApp e Spotify, nem pensar. Esse país é a Coreia do Norte, onde se vive um isolamento de comunicação sem igual.
Aos norte-coreanos, desde o jardim de infância, é imposta uma lavagem cerebral imensa de culto ao regime e aos líderes do passado e do presente Kim Il-sung, Kim Jong-il e Kim Jong-un. Nas ruas, quase todos, homens e mulheres, ostentam botons na roupa que estampam os líderes nacionais. Suas fotos são onipresentes em prédios. Por toda Pyongyang, e nas lavouras do Interior, mensagens de louvação como “vida longa a Kim Jong-un” são comuns. Em alto-falantes nas ruas e fábricas músicas e discursos ao longo do dia de exaltação patriótica. Grandes painéis nas ruas completam a propaganda maciça. Pela televisão, somente notícias do ditador, vídeos patrióticos, filmes nacionais e documentários sobre os líderes passados. Os norte-coreanos respiram ideologia. Vivem da ideologia e para ela.

Durante o  Mass Games, a exaltação da obrigatoriedade do ensino por 12 anos

Durante o Mass Games, a exaltação da obrigatoriedade do ensino por 12 anos

Essa maciça lavagem cerebral faz com que as lideranças passadas e do presente sejam cultuadas como quase divindades em um país em que não se veem templos ou igrejas. Tal devoção testemunhamos nas ruas de Pyongyang durante a parada militar da manhã do dia 9, data nacional, que desta vez teve menos armas e não exibiu os mísseis intercontinentais que justificaram a ameaça de “fogo e fúria” de Donald Trump antes das conversações de paz. As ruas e calçadas estavam tomadas de norte-coreanos acenando flores para bandas marciais, exaltando os militares que desfilavam e que são a base do estado nacional. À noite, uma marcha de tochas completou a demonstração de força patriótica nas ruas de Pyongyang.

Aperto de mãos entre os presidentes das duas Coreias foi representado no gigantesco mosaico humano dos Mass Games 

Aperto de mãos entre os presidentes das duas Coreias foi representado no gigantesco mosaico humano dos Mass Games



Correio do Povo

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