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domingo, 21 de maio de 2023

Facções gaúchas disputam poder no Uruguai

 Rota cobiçada pelo tráfico internacional de drogas


Conhecido por suas atrações turísticas, incluindo as gastronômicas, como o alfajor, o doce de leite, a empanada, o chivito, o pancho e a parrilla, o Uruguai atrai e tem sido cobiçado cada vez mais pelo narcotráfico. Um recente relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) alerta que o país vizinho está inserido entre as principais rotas do tráfico internacional de drogas, em especial, da cocaína.

A publicação cita a atuação da facção criminosa paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) no país vizinho, apontando o emprego de aeronaves e de navios para o transporte da droga. O porto de Montevidéu é destacado no documento como um dos pontos estratégicos para as remessas de cocaína enviadas pelo PCC à Europa e à África. O relatório do Unodc indica que outros grupos menores estão começando a operar no mercado interno do narcotráfico. 

No Uruguai, a reportagem do Correio do Povo apurou que a presença é cada vez maior também de ao menos quatro facções gaúchas – Os Manos, Bala na Cara, Abertos e Os Tauras – na busca pela ampliação dos negócios ilícitos a partir da disputa pelo controle do narcotráfico interno que se reflete no aumento dos homicídios naquele país.

Os indícios dos traficantes gaúchos apareceram ainda em 2018. O diretor do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil, delegado Carlos Wendt, avalia que a descriminalização da maconha pelas autoridades uruguaias, em 2013, atraiu a atenção das organizações criminosas.

Ele lembra que o Uruguai sempre foi “um fornecedor de armas e de munições” para o Brasil. Wendt acredita que essas rotas serviram, então, para escoar também as drogas, pois já existiam os contatos entre criminosos de ambos os países que “acabaram criando laços”.

Outro fator atribuído pelo diretor do Denarc é que os portos brasileiros, usados para a exportação de drogas, começaram a ser monitorados com maior intensidade. “Os traficantes começaram a descer para o Sul”, constatou, recordando a utilização dos portos de Itajaí, em Santa Catarina, e de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, além de Montevidéu, no Uruguai.

Em um primeiro momento, os grupos agiam integrados, mas depois alguns quiseram “expandir os lucros e acabam tentando dominar o território”. Os conflitos surgiram, pois as facções “eliminam aqueles indivíduos que eram parceiros”. Wendt explica que ocorreu “um aumento nos índices de violência” e, por consequência, os autores dos crimes foram para o sistema prisional, onde cooptaram outros detentos e dominaram galerias. Ordens de execuções passam a ser emitidas de dentro dos presídios uruguaios. “As mesmas situações que ocorrem no Brasil. É o modelo exatamente daqui”, comparou.

A nova realidade das facções gaúchas chamou a atenção das autoridades uruguaias. O diretor do Denarc esteve então em meados do ano passado no país vizinho, onde trocou experiências e informações com as forças policiais. “Estiveram presentes, inclusive, três ministros de Estado”, lembrou.

Ele repassou as mesmas ações usadas pelo Denarc no combate à criminalidade, como descapitalizar as organizações, encarcerar e isolar as lideranças e apreender grandes carregamentos de entorpecentes. “Quando os colegas uruguaios têm alguma dificuldade de identificar algum grupo, a gente ajuda”, frisou, enfatizando que o órgão policial monitora a situação na fronteira do Rio Grande do Sul, como por exemplo a região entre Santana do Livramento e Rivera, apontado como principal foco.

Conforme o delegado, o fluxo de drogas consiste nas facções gaúchas enviarem maconha paraguaia para o Uruguai e, no sentido contrário, trazerem skunk. No caso da cocaína, o principal caminho é remetê-la para outros países através dos portos.

Sobre o futuro da luta contra as drogas e os crimes conexos oriundos, o diretor do Denarc lamenta que “a demanda continuará ocorrendo enquanto a gente tiver esse grande número de usuários na sociedade, em todas as classes sociais”. De acordo com ele, “sempre que a gente tem uma sociedade viciada, a demanda vai existir”.

Wendt entende também que a criminalização da maconha não termina com o narcotráfico, mas a descriminalização dela piora o problema, sendo mantido até mesmo o mercado paralelo e clandestinos dos entorpecentes. “O nosso papel é sempre manter a situação sob controle e não deixar esses grupos crescerem de modo a criar estados paralelos, como já aconteceu em outros países da América do Sul. Se o tráfico de droga nunca vai acabar porque sempre vai ter demanda, usuário, então a gente tem que fazer um controle da situação e evitar o que aconteceu em outros países”, concluiu o diretor do Denarc.

A expansão vista pelos uruguaios

A facção Os Manos planeja expandir-se em território uruguaio. A avaliação é do professor da Universidade da República, no Uruguai, Nicolás Centurión, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE), no artigo “Geopolítica do Mercosul: narcotráfico, hidrovia e negócios”. “É o caso da fronteira Nordeste com o Brasil, no departamento de Rivera, onde o bando brasileiro Os Manos conquistou a região e pretende avançar para o interior do Uruguai”, afirma no texto. “Nas últimas semanas, 20 uruguaios integrantes da quadrilha foram capturados”, lembra.

Para Nicolás Centurión, o Uruguai apresenta “condições altamente desejáveis para o narcotráfico: fronteira seca com o Brasil; muitas vias de acesso com a Argentina e a ligação com a hidrovia Paraná – Paraguai; meio país sem radar aéreo, banquete para pequenos aviões com carregamentos de drogas; mais de 800 pistas de pouso clandestinas; rígido sigilo bancário; um porto entregue a uma multinacional belga há 60 anos, onde este país se tornou um dos destinos mais cobiçados pelos narcotraficantes”. Ele acrescenta também “controles fronteiriços muito frouxos, corrupção policial e forças de segurança mal equipadas para conter o fogo inimigo”.

Sobre a presença da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), Centurión considerou como um fenômeno exclusivo dos presídios brasileiros. “No Uruguai, houve uma tentativa de importação dessa organização, mas foi infrutífera, não por questões de segurança e inteligência, mas pela lumpenização dos presos uruguaios e sua falta de organização”, explica.

Ele cita a importância da hidrovia Paraná-Paraguai, ligando o Brasil ao Uruguai, como rota do tráfico internacional de drogas para a Europa e África. Cerca de 46 toneladas de entorpecentes passaram por essa rota entre 2021 e 2022. “O PCC tem ligações com a máfia calabresa através da ‘Ndrangheta, sendo a porta de entrada da cocaína na Europa”, frisa no artigo.

A ‘Ndrangheta comanda em torno de 80% do comércio de cocaína que entra na Europa, de acordo com relatórios registrados pela Antimafia da Itália. “No caso uruguaio, 72% das drogas apreendidas vieram da hidrovia”, diz Centurión, observando que antigas rotas de contrabando e de grãos são utilizadas para escoar os entorpecentes.

País vizinho realiza operações contra grupo

Em 2022, as Brigadas Antidrogas de Artigas, Rivera e Tacuarembó detectaram a presença de integrantes da facção Os Manos ligados a criminosos nas cidades de Artigas, Bella Unión, Rivera e Tacuarembó. Uma megaoperação interrompeu a rede que trabalhava para o grupo gaúcho.

As investigações apuraram que os membros da facção traziam as drogas por Bella Unión e depois distribuíam para seus contatos em Artigas, Bella Unión, Rivera e Tacuarembó, visando a posterior venda. As provas obtidas permitiram que a Justiça expedisse 23 mandados de busca e apreensão e 32 mandados de prisão.

Houve apreensão de duas espingardas e uma réplica de arma de fogo com seis munições não letais, 65 munições de diversos calibres, além de 17 telefones celulares, embalagens de pasta base de cocaína, um veículo e 12.763 pesos. A ação resultou ainda no recolhimento de mercadorias contrabandeadas, como 905 caixas de cigarros, 30 frascos de óleo, 24 frascos de repelente, 36 lâminas de barbear, cremes de massagem com infusão de cannabis, 24 desodorantes, 30 isqueiros e 25 blisters de remédios.

No total, 32 pessoas foram presas e transferidas para Rivera. Destas, 12 foram soltas e 18 foram condenadas, sendo formalizado inquérito de dois suspeitos.

Denarc age na fronteira contra a criminalidade

O Denarc tem realizado operações na fronteira para combater a atuação das facções gaúchas. A ação mais recente ocorreu em 23 de março deste ano, sendo coordenada pela delegada Ana Flávia Leite. Um traficante gaúcho, de uma das organizações criminosas, que seria o responsável pela venda de drogas em Santana do Livramento e Rivera, foi preso. Ele mantinha inclusive a companheira em cárcere privado em um imóvel utilizado para o armazenamento de drogas e armas na cidade uruguaia.

O indivíduo, com antecedentes, estava foragido do sistema prisional. O mandado de prisão foi expedido após sua condenação definitiva por homicídio. Em 2019, ele matou um homem inocente que chegava a um bar. A vítima morreu com um disparo de arma de fogo que atingiu seu abdômen. Após a condenação, o criminoso teria fugido de Porto Alegre. Desde então, ostentava nas redes sociais fotos de drogas e armas utilizando outro nome com o objetivo de não ser identificado. Durante as investigações, o suspeito foi visto no Uruguai. Monitorada a rede social, os agentes constataram que, durante o Carnaval, ele desfilou por uma escola de samba em Rivera, sendo integrante da bateria. 

Houve a apreensão de 1,6 quilo de maconha, 315 gramas de cocaína, 426 gramas de crack, três revólveres calibre 38, uma pistola calibre nove milímetros, 205 munições de vários calibres, duas balanças de precisão, R$ 32,7 mil em dinheiro, 220 dólares, 5,1 mil pesos uruguaios. Os valores são oriundos do tráfico de drogas.

Em continuidade, outro indivíduo, da mesma facção, foi preso com uma arma de fogo em uma residência em Santana do Livramento. Dentro do imóvel, os agentes localizaram outra arma de fogo, 64 porções de crack, uma porção de cocaína e nove porções de maconha.

Na época, a delegada Ana Flávia Leite destacou a importância da integração entre as forças de segurança pública para o combate ao narcotráfico, que “se vale da proximidade entre os dois países e a facilidade atinente à livre circulação de brasileiros e uruguaios”.


Correio do Povo

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