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sexta-feira, 15 de julho de 2022

STJ estabelece uma nova fórmula para o rol de procedimentos da ANS

 Em 8/6/22, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, num julgamento congregado entre a 3ª e a 4ª Turmas da referida corte, houve uma decisão sobre o polêmico tema do rol taxativo, ou não, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Num score final de 6 votos a favor de um rol taxativo, contra 3 votos de um rol exemplificativo, venceu a tese do "rol taxativo mitigado". Antes de comentarmos o que significaria essa figura na prática, vamos observar o um pouco o que representa a atuação da ANS sobre o mercado de saúde suplementar.

 

Em meio ao um furor de privatizações ocorridas no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), no final da década de 1990, foram leiloadas empresas estatais à iniciativa privada, dando margem ao surgimento de empresas de telefonia, de energia elétrica, novas companhias aéreas, entre outras concessionárias e sociedades comerciais autorizadas a preencher espaços ocupados pelo Estado.

Era um momento de marcante vitória da doutrina neoliberal, impulsionada com a globalização, advinda da ascensão internet. Os defensores da doutrina socioeconômica neoliberal defendem a presença mínima do Estado na economia, acreditando piamente que o mercado se autorregularia, gerando trocas mais justas e equilíbrio negociais. Os seguidores dessa linha combatem a ideia do Estado de Bem-Estar social, e por consequência, a social democracia. Acreditam também que um Estado forte acaba sendo custoso demais, limitando ações comerciais em prejuízo da "liberdade econômica". Assim, por exemplo, regras de proteção de consumidores contra práticas abusivas, cláusulas abusivas, desequilíbrios negociais, publicidade e ofertas ditas ilícitas, entre outros, podem ser vistas como entraves à máxima performance do mercado (entenda-se, maior margem de lucro), que deveria ser regida pelo antigo adágio da "mão invisível" do mercado, que promoveria autocorreção de distorções, apoiada pela livre concorrência.

No Brasil, não se tem um campo aberto, do ponto de vista normativo, a uma iniciativa privada sem limites, especificamente no âmbito da saúde suplementar, embora o tivesse sido basicamente assim nas décadas anteriores ao advento do marco regulatório do setor, a Lei nº 9.656/98.

Nesse período sem lei específica, quando prevalecia a autonomia da vontade na composição do conteúdo negocial, diversos eram os problemas vivenciados pelos consumidores. Esse campo contratual amplo, inclusive, gerou pressão de consumidores e da classe médica por uma norma com regras mínimas que garantissem igualdade no setor, o que acabou gerando a construção da referida Lei 9.656/98. Então, o que se pôde observar é que a ausência do Estado na fiscalização e regulação do setor de saúde foi muito prejudicial aos consumidores, e falhou a doutrina liberal nesse ponto, ao advogar a que autoregulação do mercado, promovida pela livre concorrência, seria um mecanismo de fomento de trocas justas.

E, seguindo-se um padrão norte-americano de não intervenção na economia, ao invés da presença estatal direta na produção e oferta de serviços, adota o sistema de agências reguladoras, que teria a incumbência de, entre outros temas, de fiscalizar os agentes privados que estariam a oferecer serviços públicos concedidos ou estratégicos. No âmbito dos contratos de planos e de seguros de saúde, foi gerada a ANS através da Lei 9.961/00.

Contudo, com vinte e dois anos de existência, a ANS, assim como as demais "agências irmãs", surgidas quase que do mesmo parto, ou melhor, do mesmo momento histórico, em que pese uma importante contribuição, padece de um rol de críticas, seja por parte dos usuários, dos fornecedores e do Poder Judiciário. Assim, não raro a ANS tem suas resoluções afastadas por se entender que contrariam o marco legal da saúde suplementar ou o Código de Defesa do Consumidor, entre outras leis às quais ela deve prestar subordinação.

Na medida em que esse cenário se perpetua, o que se observa é que a ANS não conseguiu construir para si um padrão de legitimidade externa, de confiabilidade nas suas tomadas de decisões. Não se está dizer que a regulação deva ser um ambiente simpático, até porque ela é produzida num cenário de intenso conflito de interesses, representado de um lado pelas operadoras de seguradoras de saúde e de outro, os consumidores e usuários.

Um lado almeja alta performance de lucro, e outro, a entrega de serviços de saúde eficientes e com qualidade com cobrança de valores possíveis. Isso faz da harmonia nas relações de consumo, que advém do artigo 4º do CDC, uma grande utopia. Não se tem uma harmonia, mas uma disputa declarada, com alguns momentos de conflitos intensos, e outros de "cessar-fogo".

Pois bem, a ANS não consegue prover uma harmonia ao mercado que regula. Não considero que isso deva ser atingido pela ANS, pois seria uma missão solitária e hercúlea. Mas posso pensar que a ANS poderia tentar assumir um papel de mediadora, ao invés de impor resoluções e outras normas que produzem ônus demasiados sobre os players, especialmente sobre a parte mais fraca, os consumidores. No afã de proteger o mercado, a ANS acaba infringindo pesado ônus à parte contratual que Henry Ford dizia ser o elo mais importante da produção, o cliente.

Ao fomentar o diálogo, a ANS poderia tentar aproximar melhor os setores afetados no mercado de saúde suplementar, quais sejam, seguradoras e operadoras, usuários e representantes da classe médica, hospitais e clínicas. Mediação não é algo que garanta necessariamente a produção de resultados almejados. Mas, por outro lado, soluções eficazes podem ser construídas com concessões mútuas.

Essa não atuação aproximativa acaba levando a uma série contínua de pleitos judiciais, e aí estamos falando de milhares, onde é debatido o rol de procedimentos, que a ANS defende ser taxativo. O primeiro rol de procedimentos estabelecido pela ANS foi estabelecido por Resolução do Conselho de Saúde Suplementar (Consu) 10/98, sendo atualizado em 2001 e dali em diante, recebendo atualizações a cada dois anos.

No processo de revisão do rol, o setor responsável reúne-se para construir uma proposta e submete a mesma à avaliação da sociedade por meio de consulta pública, através da internet. Por lógico, a participação do leigo que pouco ou nada entende de medicina é muito limitada, afora o fato de que nem todos os cidadãos têm acesso à internet, ou conseguem navegar por ela, por motivo de idade, de doenças e desconhecimento. Por outro lado, a atuação dos fornecedores é muito visível, até porque as incorporações de novas tecnologias na área médica mexem nos valores do setor. Em resumo, o método utilizado, na prática, não é igualitário, no que se pode então questionar a sua eficiência.

Seja por isto, ou por outros motivos, como a limitação da atuação do médico, em violação ao Código de Ética Médica, por exemplo, seja por gerar desequilíbrio proibido ao consumidor, ou por representar também um afastamento da Lei 9.656/98, a ANS, que pretendia obter um pronunciamento judicial unânime no STJ, sobre a taxatividade de seu rol de procedimentos, acabou com uma resposta bem diferente.

No julgamento dos embargos de divergência no âmbito dos Recursos Especiais nº 1.886.929 e nº1.889.704, o STJ entendeu que o referido rol tem cunho taxativo "mitigado", ou "modulado". Inicialmente, registro que, salvo melhor juízo, não há como algo ser taxativo e ao mesmo tempo apresentar exceções, muito embora a expressão "rol mitigado" tenha uma sonoridade interessante, melhor do que "rol exemplificativo com requisitos", que é o que acabou ocorrendo.

De qualquer forma, o STJ não aderiu à proposta da ANS de que a mesma teria a última palavra em limites de coberturas, passando a definir que, comprovadas certas circunstâncias em torno do paciente e do tratamento adequado, o mesmo passa ter o direito de receber a cobertura do que realmente necessita. E, assim sendo demonstrado, resta afastado o rol da ANS no caso concreto.

Esse tipo de postura já é conhecida, aliás, no STJ e no STF, acerca do fornecimento de tratamentos na via do SUS. Não é equivocado exigir-se comprovação técnica para o deferimento do tratamento pleiteado pelo paciente, quando o rol não atende essa demanda. Mas também viola o sistema jurídico empoderar a ANS do conhecimento técnico último, ao ponto de a mesma poder se sobrepor ao profissional médico, desprezando as peculiaridades do paciente. Afinal, a medicina não é uma ciência exata. Por fim, mesmo diante dessa decisão do STJ, posterior pleito foi julgado pela mesma corte atribuindo caráter exemplificativo ao rol, e agora o tema chama a atenção também do STF. Cabe-me registrar, portanto, que serão muito empolgantes os próximos capítulos da saga "rol da ANS".

Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 14/07/2022 e SOS Consumidor

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