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domingo, 19 de junho de 2022

Os 100 anos de 'Ulysses'

 Milton Ribeiro*

James Joyce com um jornal irlandês em alusão ao 16 de junho de 1904 

A Casa de Cultura Mario Quintana e o Instituto Ling se uniram para promover um Bloomsday em edição especial, com uma festa estendida que iniciou na última quinta-feira (16) e que se segue até este sábado (18). O Bloomsday é celebração do romance “Ulysses”, do irlandês James Joyce, e ocorre anualmente no dia 16 de junho, data em que ocorre a ação do livro. Há controvérsias sobre o ano em que começou a ser comemorado. Alguns indicam 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita aponta 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em “Ulysses”, o célebre 16 de junho de 1904. O que sabemos é que ele hoje é comemorado não apenas em Dublin, mas no mundo inteiro onde haja admiradores do livro.

Como muitas das grandes obras de arte, o “Ulysses” de James Joyce tem existência além da página impressa. É um romance que deixa obcecadas muitas pessoas, que podem passar a vida inteira refletindo sobre suas páginas. No entanto, muitos leitores não iniciados veem o épico de Joyce com um medo paralisante, algo que o autor não amenizou exatamente com esta admissão de meados da década de 1920: “Coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que manterá os eruditos ocupados por séculos, discutindo sobre o que eu quis dizer. Essa é a única maneira de garantir a imortalidade.” A postura é claramente irreverente, mas o fato é que Ulysses não é fast-food. Ele desconcerta a sabedoria convencional, ignora crenças, ataca lugares-comuns, desafia padrões. Muitas das emoções e ações inseridas no romance são inquietantes. Mas se o mundo da criação de Joyce é contraditório e multifacetado, nossa existência... Como ela é?

A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é simples e humano. No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia nas margens do rio. Leopold Bloom, vendedor, atormentado por uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca, responde a carta recebida, leva uma surra de um anti-semita, masturba-se na praia observando uma garota, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim da história.
Tudo isso em apenas um dia. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo é escrito em estilo próprio, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica, cujo naturalismo não se percebe no nível mais superficial da narrativa. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos – épico, lírico, drama, comédia – são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências.
Joyce era um criador incomparável de palavras e trocadilhos. Também foi um explorador aventureiro de como a mente funciona, de como pensamentos aleatórios podem provocar imagens por livre-associação, causando saltos ou recuos. Os pensamentos e sentimentos dos três personagens principais -- Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus -- muitas vezes lutam com a natureza escorregadia e incontrolável da memória. Eles são indivíduos extremamente críveis. E é por isso, apesar dos obstáculos que o autor conscientemente estabelece para seu público, que o livro é tão atraente hoje quanto era há um século. Há uma clareza escondida em Ulysses, apesar de suas muitas complexidades.

O romance é principalmente sobre o fracasso do casamento dos Bloom, com Leopold e Molly finalmente reconhecendo a responsabilidade pelo menos parcial pelo impasse. Molly, a substituta irônica da Penélope da Odisseia de Homero, fica em casa como sua contraparte clássica, tendo sido privada de relações sexuais com o marido por 10 anos, 5 meses e 18 dias. Por que essa abstinência épica? Porque, após a morte de seu filho de 11 dias, Rudy, Leopold não conseguiu ou não quis fazer o que geralmente é considerado amor convencional com sua esposa.

Dublin. Poucos romances estão tão ligados ao seu cenário quanto Ulysses está. Antes da publicação do romance em 1922, a cidade, que no início de 1900 tinha uma população de pouco mais de 400 mil habitantes, fora visitada por Joyce pela última vez em 1912. Ele se exilou de propósito, ciente de que nem sua vida nem seu trabalho poderiam florescer naquele mundo reprimido, empobrecido e culpado, dominado pela Igreja Católica Romana e pelo colonialismo inglês. No entanto, mentalmente, ele nunca se ausentou da cidade de seu nascimento. Suas principais obras - Dublinenses (1914), Retrato do artista quando jovem (1916), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939) – são todas ambientadas nesse local “tão amado e sujo”.

Em parte devido ao seu conteúdo sexual, o épico de Joyce foi processado por imoralidade. Há um sentimento de desafio na decisão do autor de apresentar o prazer sexual em uma obra publicada em 1922. Mas o romance não é um tratado de sensualidade sobre as alegrias e as decepções de eros.
De fato, os enigmas do romance criaram debates contínuos. O que será de Molly e Blazes Boylan? Leopold, como seu progenitor épico Ulysses, colocará sua própria casa em ordem? Molly e Leopold conseguirão fazer reviver seu relacionamento sexual moribundo? Essas perguntas podem facilmente se tornar obsessões para toda a vida. 

* Jornalista e livreiro. Proprietário da Livraria Bamboletras. 

 

SERVIÇO

O QUÊ: Bloomsday 22 - 100 Anos de Ulysses
QUANDO: Hoje, a partir das 16h. 
ONDE: Instituto Ling (João Caetano, 440). 
QUANTO: Entrada franca. 
VIRTUAL: Transmissão ao vivo pelo YouTube do Ling (youtube.com/watch?v =vHp9Z5EWzng). 


PROGRAMAÇÃO
16h - Leopold Bloom, interpretado pelo ator João Petrillo, dá as boas-vindas.
16h10 - Painel 1 - Ulysses 100 anos e o legado de Joyce, com Jeferson Tenório e Donaldo Schuler e mediação de Milton Ribeiro.
16h40 - Pocket show com Irish Fellas.
16h50 - Esquete teatral com João Petrillo interpretando Leopold Bloom.
17h - Painel 2 - James Joyce era louco? Divagações sobre Arte e Psicanálise, com Edson Souza, Elida Tessler e Carlos Gerbase e mediação de Milton Ribeiro.
17h40 - Pocket show com Irish Fellas.

Correio do Povo

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