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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Com servidores no centro de polêmica, pacote de Leite colabora para corrida de aposentadorias

O Reforma RS atinge as carreiras e a previdência do funcionalismo. O Executivo aponta como a única forma de sanar a crise, enquanto entidades fazem duras críticas ao projeto

Por Mauren Xavier | Foto: Ricardo Giusti

O governo do Estado tem mais de 364 mil vínculos, contando servidores e empregados da administração direta e indireta, ativos e inativos. Segundo o Executivo, cerca de 82% de tudo o que é arrecadado serve para custear a folha de pagamento desse contingente, distribuído pelas mais diferentes carreiras do Estado, assim como pelos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, além do Ministério Público, autarquias e fundações.

O dado de vínculos da Secretaria Estadual da Fazenda, referente a dezembro de 2018, não traz exatamente a atual realidade, já que há uma verdadeira corrida nos últimos meses pela aposentadoria, uma vez que as regras foram alteradas no âmbito federal, pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 06/2019. Mesmo assim, permite ter uma dimensão do impacto trazido pelo pacote chamado “Reforma RS”, protocolado no dia 14 de novembro na Assembleia Legislativa e do qual, parte dos projetos, deverá trancar a pauta de votações a partir de 17 de dezembro, nas últimas sessões antes do recesso parlamentar. As propostas, distribuídas em uma PEC, seis Projetos de Lei Complementar (PLC) e um Projeto de Lei (PL), trazem alterações consideráveis às carreiras dos servidores e à previdência do funcionalismo, abrangendo todas as esferas do setor público.

Segundo o governador Eduardo Leite (PSDB), é o remédio para evitar que o paciente morra, uma metáfora à situação fiscal do Estado, e impedir o caos. Ao mesmo tempo, representantes de sindicatos denominam esse como “um pacote de maldades” e que vai fazer “o paciente morrer”, uma vez que os servidores terão perda de direitos e redução salarial, tornando menos interessante, inclusive, permanecer na função pública. Essa não é a primeira vez que mudanças são propostas para as carreiras dos servidores. Porém, é inédita a grande dimensão das alterações, que, se aprovadas na íntegra, como espera o governo, poderiam representar uma economia de mais de R$ 25 bilhões no período de uma década. Para se ter uma dimensão, apenas para 2020, segundo o projeto orçamentário aprovado no final de novembro na Assembleia, o déficit nas contas públicas é estimado em R$ 5,2 bilhões. O governo assegura que não há alternativas para a busca de recursos a curto prazo, para conseguir, por exemplo, colocar a folha de pagamento em dia dos funcionários do Executivo, que enfrentam o parcelamento há quase 50 meses e terão, pela quinta vez consecutiva, que contrair um empréstimo junto ao Banrisul para conseguir receber o valor no final de dezembro, como prevê a legislação.

Quem são os servidores?

São mais de 364 mil vínculos de servidores públicos do Rio Grande do Sul, que estão distribuídos pelas mais diversas áreas e poderes do Estado, como na área da segurança, educação, saúde ou ainda no Judiciário e Defensoria Pública. São esses funcionários que fazem a máquina pública funcionar. Alguns têm carreiras específicas, que, de acordo com a sua função, envolvem gratificações e outras vantagens.

Porém, esse contingente de servidores tem variado significativamente na última década. Uma série histórica da Secretaria da Fazenda mostra as alterações. Por exemplo, a questão do número de inativos superar os ativos, que pode ser apontada como a mais evidente e que ocorreu entre 2015 e 2016. Em dezembro de 2015, o Estado, contabilizando a administração direta e indireta, somava 165.750 vínculos ativos e 156.982 inativos, além de 47.717 pensionistas. No ano seguinte, os inativos contabilizaram 162.684, contra 156.652 que estão na atividade. A diferença fica mais evidente se pensarmos que entre 2015 e 2016, o Estado perdeu mais de 9 mil vínculos da ativa. Contingente esse que só reduziu desde então e, no dado de dezembro de 2018, era de 148.813 mil. Em outras palavras, foram quase 17 mil servidores a menos na ativa no período entre 2015 e 2018. Além disso, nesse mesmo tempo, o grupo de inativos aumentou quase 12,5 mil, logo, em maior parte, passando para a Previdência.

E essa disparidade deve se acentuar. Os pedidos de aposentadoria têm crescido entre os servidores neste ano, em parte pela aprovação da reforma da Previdência no âmbito nacional e também pelas mudanças propostas pelo Executivo. Em outubro, a procura foi praticamente o dobro na comparação a outros meses do ano. A Secretaria Estadual do Planejamento, Orçamento e Gestão (Seplag) diz que as médias mensais de solicitações eram de até 600 até setembro. Porém, em outubro, atingiu quase 1,2 mil. Apesar do crescimento, sindicatos afirmam que há uma grande demanda represada. Isso porque quando atinge os critérios que viabilizam o pedido, o servidor deve fazer a solicitação. A alegação é de que o tempo de espera chega a 180 dias. Seplag justifica que essas são situações pontuais.

A situação fiscal e o Reforma RS

O discurso sobre a crise fiscal do Rio Grande do Sul não é recente. Nos últimos governos, uma série de ações foram adotadas pelos diferentes chefes de Executivo. Porém, o centro do cálculo matemático passa por uma relação simples: a arrecadação do governo é menor do que a despesa. Entre as alternativas encontradas estavam, por exemplo, os saques dos depósitos judiciais e do Caixa Único, que totalizaram R$ 19 bilhões, ou ainda a majoração da alíquota do ICMS, que vale até o final de 2020. Valores que entram no caixa e ajudam a pagar as despesas.

Existe uma série de razões apresentada pelo governo para explicar o agravamento da situação fiscal, que se reflete, mais especificamente, no atraso no pagamento de salários dos servidores do Executivo. Um desses pontos é o gasto com a Previdência. Segundo o Executivo, o déficit anual previdenciário está projetado em R$ 12 bilhões neste ano.
Além disso, o atual governo justifica que há dois fatores que, de certa maneira, evitam o rombo maior. O primeiro é o fato de não estar sendo paga a dívida com a União, desde 2017, a partir de uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O Executivo estima que cerca de R$ 7 bilhões não foram pagos desde agosto de 2017.

Outra negociação diz respeito ao pagamento de precatórios, que são dívidas resultantes de ações em que o Estado foi condenado. O passivo atualizado de débitos vencidos e não pagos atinge R$ 15,8 bilhões. Também por meio de liminar, R$ 1,9 bilhão é o valor anual que o governo deixa de pagar. Um argumento utilizado com frequência pelo Executivo para dar uma dimensão da crise fiscal é que se essas duas liminares não estivessem em vigor, o Estado estaria pagando atualmente os salários com seis meses de atraso.

A dimensão do crescimento das dívidas e da crise foi demonstrada pelo Executivo por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), encaminhada e aprovada no primeiro semestre do ano na Assembleia. O texto previa o congelamento dos gastos dos poderes. A proposta foi sancionada por Eduardo Leite. Porém, acabou sendo judicializada e rejeitada pelo Tribunal de Justiça do RS. O mérito ainda está em análise no STF. O déficit estimado de 2020 é de R$ 5,2 bilhões. Na prática, o Executivo argumenta que o valor que falta se reflete na ausência da capacidade de o Estado investir em obras e em serviços. Assim, as propostas da Reforma RS são justificadas como uma maneira de conter o gasto com funcionalismo.




Se por um lado a rejeição é grande por parte dos servidores, representantes da área empresarial apoiam as mudanças com a justificativa de tornar o Estado “mais leve” e “mais competitivo”. O presidente da Fecomércio/RS, Luiz Carlos Boh, defendeu a importância da aprovação. “Temos que dar condições ao Rio Grande do Sul de competitividade.” Na mesma lógica, o economista e consultor da Fecomércio, Marcelo Portugal, enfatizou que as mudanças nas carreiras atingem diretamente os gastos correntes, o que é fundamental, no momento em que a arrecadação não está reagindo da maneira como deveria para sustentar o gasto. Na apresentação do governador na Federasul, a presidente da entidade, Simone Leite, apoiou o pacote. “Os problemas são encarados de frente com propostas de soluções que a Federasul apoia por tratar-se de mudanças para o futuro”, disse, também convocando a mobilização por parte dos empresários a favor do pacote.

Porém, as críticas não são poucas por parte dos servidores. O presidente do Movimento Unificado, que reúne 80 entidades sindicais e associativas, e da Federação Sindical dos Servidores Públicos no Estado (Fessergs), Sérgio Arnoud, argumenta que a máquina pública do Estado é avaliada como a segunda mais eficiente do país. “Ao contrário de enfrentar o problema do Estado, que é o de receita, e não de cortes no setor público, o governador investe contra toda a sociedade, precarizando o serviço público”, pontuou. Para ele, o problema do RS é gestão. Neste ponto, destacou que o Estado aparece em último lugar na apresentação de projetos em busca de recursos junto ao governo federal. Outro ponto de crítica não foi dirigido exclusivamente ao atual governo e é o que chamou de “premiação” aos devedores, com os constantes lançamentos de refinanciamento de dívidas de empresas. “Foram editados quatro decretos permitindo a anistia aos devedores em cinco anos”, ressaltou, comparando que no mesmo período os servidores não tiveram reajuste salarial e enfrentam o parcelamento. Ainda sobre as propostas, cita que a da Previdência prevê descontos dos aposentados que ganham até cinco salários mínimos, que é o teto no país. “Hoje esse grupo é isento. A partir do pacote, todos passarão a pagar. Isso representa mais de 60% da folha do Estado. Então, são os servidores, os aposentados e pensionistas que terão redução salarial a partir disso.”

Em relação ao projeto do magistério, a presidente do Cpers Sindicato, Helenir Aguiar Schürer, considera as mudanças como devastadoras para a categoria. Segundo ela, as alterações, se aprovadas, vão representar perda salarial, uma vez que os salários já são baixos. A crítica vem sendo rebatida pelo governador Eduardo Leite em diversas ocasiões. Ele argumenta que o atual plano de carreira da categoria é responsável pela desvalorização dos ganhos, uma vez que qualquer aumento tem impacto em cadeia em todos os vínculos, gerando uma repercussão financeira muito elevada.



Entidades ligadas às categorias da área da segurança pública também fazem críticas às alterações. Em nota divulgada à sociedade, o Fórum das Associações Militares do Estado do Rio Grande do Sul, que reúne seis associações, aponta que o projeto não está alinhado com as discussões que ocorrem no Congresso Nacional. “Entendemos que a nossa condição de militar, por simetria com as Forças Armadas, e chancelada pela PEC recém aprovada no Congresso e com o PL 1645, que está no Senado, nos dá um tratamento completamente diferenciada dos servidores. E o governo do Estado insiste em tratar os militares estaduais como os demais servidores. Não é uma questão de sermos diferentes, é a legislação que nos dá essa condição.” Segundo o diretor presidente da Associação Beneficente Antônio Mendes Filho da Brigada Militar (ABAMF), José Clemente da Silva Corrêa, apesar das conversas com o governo, o avanço foi muito pequeno.

Tensão na Assembleia

Foto: Mauro Schaefer

Na construção política do seu governo, o governador Eduardo Leite iniciou a gestão com larga margem de vantagem na Assembleia Legislativa. Ao todo, conta com 40 deputados integrantes da chamada base aliada. Esse contingente é formado pelos parlamentares dos seguintes partidos: MDB (8); PP (6); PTB (5); PSDB (4); PSL (3); DEM (3); PSB (3); Republicanos (2); PL (2); Solidariedade (1); Podemos (1); PSD (1); Cidadania (1). Além desses, há dois deputados que integram a bancada do Novo, Fábio e Giuseppe, que se denominam independentes, mas apresentam alinhamento com o conceito do governo. Os outros 13 (PT (8); PDT (4); Psol (1)) integrariam a oposição.



O que matematicamente poderia parecer simples no plenário, acabou não resistindo às críticas ao pacote como um todo, mas mais especificamente ao projeto do magistério. Com a pressão de uma greve articulada pelo Cpers/Sindicato e que ganhou força, associada aos estudos técnicos de bancadas, as peças de apoio acabaram caindo como num jogo de xadrez. Se, no início, o governo poderia conceber algumas desistências pontuais, especialmente ainda reflexo da tensão resultante do pleito do ano anterior, após o anúncio formal da bancada do MDB, a maior aliada na Assembleia, de que votaria contra o projeto, caso não ocorressem alterações.

Em sequência, as manifestações aumentaram, sendo consolidadas pelos partidos. Nos últimos dias, com a adesão de categorias da área da segurança, que apontaram indicativo de greve às vésperas do possível início das votações na Assembleia e os atos promovidos por servidores de diversas áreas, o clima deve esquentar. Uma demonstração foi a grande mobilização, na quinta-feira passada, promovida por integrantes da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros, que trancaram várias ruas do centro de Porto Alegre, em uma caminhada para chamar a atenção da população ao pacote.



Assim, se as discussões já vinham sendo acirradas, deverão tomar mais corpo nos próximos dias, especialmente na terça-feira, dia 10, quando sindicatos estão convocando as categorias para o chamado “Dia D”, para tentar reverter a possibilidade de votação efetiva em plenário nos dias 17, 18 e 19 de dezembro. Porém, com os recentes acenos de bancadas, especialmente aliadas e de grande número, há basicamente dois caminhos para o governo. O primeiro é manter a votação, aceitando fazer algumas alterações, fruto de discussões mais intensas que estão ocorrendo nos últimos dias. Outra é negociar o melhor momento para levar os projetos ao plenário. Assim, o governo pode retirar a urgência, como sinalizaram alguns deputados, como o presidente da Assembleia, Luis Augusto Lara, do PTB, mesmo partido do vice-governador, Ranolfo Vieira Júnior, e ampliar a discussão. Isso acabaria empurrando o assunto para 2020, colocando pelo ralo o trabalho do Executivo, como justificou o governador, de evitar que isso ocorresse. A intenção de Leite era a de aprovar o pacote no primeiro ano de governo e evitar a influência do período eleitoral, já que em 2020 teremos eleições municipais, o que não propicia condições para o debate de temas tão polêmicos.

A influência da eleição é um fator relevante e mostrou alguns efeitos. Uma parte das pressões em relação aos deputados para que votem contra o pacote vem também nas bases eleitorais, onde a cobrança é maior. Além disso, partidos com grande número de vereadores e prefeitos, como o MDB e PP, têm receios de perderem apoios e espaço nas disputas locais, caso votem a favor dos projetos.


Correio do Povo

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