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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

O Ópio dos Intelectuais, por Ricardo Almeida

“A religião é o ópio do povo”. A frase, escrita por Karl Marx, fez fama internacional. Citam-na, ainda hoje, para aludir ao efeito anestesiante da pregação moral das religiões sobre as massas populares. Acostumado a esquadrinhar os fenômenos sociais no que eles se vinculavam à dinâmica da luta de classes, Marx acreditava que as religiões tinham por principal papel criar um mundo secundário, irreal e evanescente para o qual convergiriam as aspirações à felicidade, que deveriam ser conquistadas neste mundo. Conquistadas, bem entendido, via revolução socialista, último giro na dupla hélice do desenvolvimento das contradições internas do capitalismo e da afirmação do sujeito revolucionário na história.

Raymond Aron não partilhava da mesma perspectiva. Estava, aliás, especialmente dotado para criticá-la, contemporâneo que foi das discussões no Le Temps Modernes, a célebre revista que ele havia fundado na década de 40 junto com Sartre, Merleau-Ponty e outros luminares da inteligência francesa de esquerda. E será ele a criticar ambos os autores, os desatinos dessa mesma inteligência e as mitologias que lhe eram mais caras, entre as quais o comunismo, esse ópio das elites.

Publicado em 1955, O Ópio dos Intelectuais é um livro provocativo. Raymond Aron retrata a Inteligência, da qual era notável integrante, ao distinguir três formas típicas de crítica feitas pelos intelectuais, e suas respectivas degenerações: a crítica técnica, quando o intelectual se coloca no lugar do governante, propõe saídas concretas, medidas políticas exequíveis, projetos; a crítica moral, quando ele denuncia as vilezas de um regime opressivo, o descrédito dos corruptos, a violência contra os cidadãos; e a crítica ideológica ou histórica, quando atinge as paragens da utopia e da contra-utopia,  projetando no tecido esgarçado da história as imagens tremulantes de um futuro maravilhoso ou terrível. São três atitudes legítimas. Quem não admira a resistência antinazista de Thomas Mann, o belo idílio de William Morris em News from Nowhere ou a reforma universitária de Wilhelm von Humboldt, para citar três momentos louváveis das três críticas?

Mas, elas também se degeneram, tornando patentes os vícios da Inteligência. Os intelectuais estão perpetuamente tentados a se evadir das responsabilidades da crítica comprometida, o que é facilitado pelas condições atuais. “Já há algum tempo, a crítica não é mais prova de coragem, pelo menos nas nossas sociedades livres do Ocidente”, escreve Aron. Mais do que irresponsabilidade, ele lhes advinha o fundo de ressentimento sócio-econômico. “Nem aqui nem lá os intelectuais recebem remuneração condizente com as suas aspirações”. O antiamericanismo de pacotilha se deve às qualidades e aos problemas dos EUA. O rebaixamento da cultura ao entretenimento pueril da indústria cultural aguça o olhar negativo A sensação de que o American way o life, com o Reader´s Digest, as distrações para todos e a publicidade chamativa, é culpado de agressão contra as formas superiores da cultura é igualmente disseminada entre os intelectuais do Japão e os da França”. Por outro lado, o desfrute das liberdades civis ocidentais acentua a hipocrisia “Por que tantos intelectuais detestam – ou se exprimem como se detestassem – uma sociedade que lhes oferece um nível de vida honroso, considerados os recursos coletivos, não coloca entraves à sua atividade e considera as obras da inteligência representantes dos supremos valores?” Ante a dúvida, nas duas primeiras partes do livro, Raymond Aron deslinda a explicação pelo poder de imantação de três mitos – esquerda, proletariado e revolução – e pela idolatria à História, mostrando a força de sedução que exercem sobre o homem de ideias.

Dentre os mitos, o da revolução é o mais importante, posto que o mais geral. Não se vê uma depreciação unilateral do fenômeno. Aron chega mesmo a admitir algum benefício nas convulsões violentas, em  condições muito especiais “A paralisia de um Estado, o desgaste de uma elite, o anacronismo das instituições tornam às vezes inevitável e outras vezes desejável o uso da violência por uma minoria”. Contudo, essa violência não é o bem em si. Devemos preteri-la pela paz. Na se trata de demagogia. O horizonte da revolução é o poder tirânico – para subjugar as elites apodrecidas é preciso concentrar o poder. Para revolucionar a ordem, esse poder não pode se adstringir às leis vigentes. Ele precisa superá-las, instituindo, deste modo, o novo fundamento a partir de si mesmo. Nesse sentido, todo poder revolucionário é tirânico. A história do declínio das revoluções em terror deveria prevenir o entusiasmo. Ao invés disso, “Para o intelectual que busca na política uma diversão, um objeto de fé ou um tema de especulação, a reforma é tediosa e a revolução, excitante.” A profissão de fé do bolchevismo afunila as leituras possíveis do socialismo, ao fazer da vanguarda do proletariado o epicentro da violência revolucionária, sob a forma de revolução permanente ou não – sem antes vituperar contra a interpretação concorrente, socialdemocrata, segundo a qual a criação processual do socialismo exigiria o reformismo gradualista, pospondo a “revolução” a um futuro indeterminado. Aron questiona a segurança da previsão histórica da necessidade da tomada violenta do poder pelos bolcheviques. Em 1989, pudemos finalmente asseverar que os eventos de outubro foram apenas episódios entre outros na antiquíssima história de golpes de Estado e derrubadas de impérios. Nunca foi defraudada a mundialização do socialismo. Infelizmente, o liberal francês morreria cinco anos antes de constatar, de maneira cabal, a pertinência do ceticismo.

A necessidade acima aludida, todavia, constitui simples capítulo – ainda que, supostamente, um dos últimos – na longa cadeia de elos históricos, inteligível para o filósofo. Invertendo a priorização do Espírito na dialética de Hegel, Marx conserva a pretensão à eficácia da teoria hegeliana, ao também pretender descortinar a necessidade de certas etapas. Do comunismo primitivo ao socialismo do futuro, para Marx, segundo Aron “a exploração e a luta de classes foram indispensáveis para o desenvolvimento das forças produtivas e para a ascensão da humanidade a um grau superior de domínio e de consciência”. Logo após a estabilização da revolução soviética, surgem dúvidas no seio dos partícipes “hesita-se entre duas atitudes: sustentar que apesar de tudo o novo regime, fiel à sua inspiração, progride na direção da meta, ou apontar a defasagem entre o que os profetas anunciavam antes da tomada do poder e o Estado que os burocratas construíram”. A dúvida é lancinante, porque repõe em jogo os méritos, se não da teoria marxiana, ao menos da interpretação bolchevique que se fez dela. Afinal, se não há progresso na direção do objetivo socialista, o Partido pode simplesmente estar enganado (e o Partido, encarnando a vontade unificada do proletariado, não pode, enquanto Partido, errar). Mais do que isso: a interpretação peculiar do marxismo que faz indispensáveis partido, vanguarda proletária e revolução violenta se vê ameaçada pela incerteza da história, o que se quis exorcizar pela magia dialética. Com efeito, é a incerteza da história o grande desmentido à sua idolatria, falso deus para o qual o óbolo da filosofia de nada serve.

Eis aí, in nuce, alguns temas dessa leitura estimulante que é O Ópio dos Intelectuais. Há muitíssimo mais de onde saíram essas considerações. Os argumentos são apresentados com retaguarda histórica ampla, conquanto não lhes seja dado tratamento sistemático. Ao contrário, o livro tem foros ensaísticos. A escrita não segue padrões rígidos e vem, frequentemente, entremeada por digressões e observações secundárias, que as vezes prejudicam um pouco o foco nos desenvolvimentos principais. Fica como uma crítica notável ao comunismo, e um mais notável testemunho da postura pública de um intelectual consciente das ilusões da sua casta, sem resvalar no anti-intelectualismo bárbaro. Ao contrário, sobre ele se poderia dizer as palavras de um compatriota, o poeta Paul Valéry, em A Liberdade do Espírito: “Digo que o capital da nossa cultura está em perigo… de que é composto esse capital: (…) de homens que tenham sede de conhecimento e de força para operar transformações interiores, sede de desenvolvimentos da sua sensibilidade; e que, por outro lado, saibam adquirir ou exercer o que for necessário em termos de hábitos, de disciplina intelectual, de convenções e de práticas para utilizar o arsenal de documentos e instrumentos que os séculos acumularam.”


Ricardo Almeida

@ricardoalmeida

Professor de Filosofia, violinista, coordenador do MBL Bahia e organizador do debate "Os EUA e a Nova Ordem Mundial" (Vide Editorial).


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