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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Fernando Schüler: Como avançar na sociedade global assolada por guerras culturais

É preciso redobrar a aposta no diálogo, na moderação e na própria democracia, com todos os seus desconfortos



​Há uma expressão em voga no debate americano que define muito do que significam as guerras culturais. É a ideia de “virtue signaling”.

De um modo direto, seria a mania de jogar luz sobre a própria virtude, que parece ter tomado conta da cena pública. É o sujeito que faz um discurso sobre o sofrimento do povo javanês na entrega do Oscar ou condena as empresas de petróleo pela extinção dos golfinhos azuis no mar do Caribe.

O virtuoso pode ser um ultraconservador a denunciar a destruição da família, ou um ativista identitário a citar os números da exclusão e dizer aos outros que calem a boca.

O virtuoso cultiva um tipo muito particular de puritanismo. Ele age à moda de Carl Schmitt [político e jurista alemão conservador] e sua dicotomia amigo/inimigo, protegendo seu mundo perfeito do risco de contaminação representado pelo outro.

Um mundo em que é clara a diferença entre a verdade e o erro. Foi esse o sentido do manifesto que Catherine Millet ajudou a escrever, tratando do feminismo atual. Ela mesma uma feminista, quem sabe uma menos dotada de virtude.

A retórica da virtude é, por definição, fadada à incomunicabilidade. Se o que penso é definido pelo lugar de onde eu falo, e não pelas minhas ideias, então temos uma pedra no caminho do entendimento e da criação de consensos.

É esse o problema identificado por autores como Mark Lilla, em seu “The Once and Future Liberal” (o liberal do passado e do futuro), e Joshua Greene, em seu “Moral Tribes” (tribos morais), mas sob perspectivas distintas.

​Lilla fala da obsessão identitária atual e sugere caminhos para a retomada da ideia de bem comum.

Greene trata da moralidade do “nós contra eles”, do tribalismo contemporâneo e sua guerra inútil, e especula sobre o que poderia definir uma metamoralidade global que pudesse alcançar algum consenso no debate público.

Ambos estarão, junto com Catherine Millet, no Fronteiras do Pensamento deste ano, e nos ajudarão a pensar o impacto das guerras culturais na democracia e as formas de viver em um mundo que parece tomado pelo desacordo.

Pesquisa conduzida pelo The Vanishing Center of American Democracy, da Universidade da Virgínia, mostrou que 8 entre 10 americanos sem curso superior acreditam que “o politicamente correto é um sério problema em nosso país, tornando difícil para as pessoas dizerem o que elas realmente pensam”.

Os dados são sugestivos. É possível ficar brabo e dizer que essa gente sem estudo é cheia de preconceitos.

Obra de alumínio ‘Vega-Eox Positif’ (1968), de Victor VasarelyObra de alumínio ‘Vega-Eox Positif’ (1968), de Victor Vasarely - SzépművészetiMúzeum / Museum of Fine Arts, 2018

Não julgo que isso faça sentido. Há um mal-estar na cultura atual. Quem sabe um tipo novo de exclusão: a exclusão dos sem retórica, dos milhares que andam por aí desarmados na guerra cultural.

Muito já se disse que a campanha de Trump expressou de alguma forma esse sentimento. Não acho que seja tão simples assim.

Um traço da guerra cultural é a substituição da persuasão pela lógica do combate. Se as pessoas falam representando mundos distintos e excludentes, não há, rigorosamente, o que persuadir ou convencer.

No fundo, essa é a consequência lógica da dominância dos temas éticos, culturais, de raça, gênero ou religião, no universo da política. Diria: dos temas morais abrangentes.

Das visões últimas sobre o que é certo ou errado, e sobre os quais não há acordo possível em sociedades pluralistas. Se for por aí a pauta da democracia, tenderemos a um jogo em que todos falam e quase ninguém escuta.

Não há dúvida de que vivemos um momento delicado para a democracia. É uma crise pelo excesso —de retórica e de certezas.

Quem diria que isso seria possível justamente quando a tão celebrada ideia da aldeia global se tornasse realidade.

Não nos resta outra saída que não redobrar a aposta no diálogo e na moderação. Na própria democracia, afinal de contas, com todos os seus desconfortos.

Fronteiras do Pensamento 2018Fronteiras do Pensamento 2018



Fernando Schüler é doutor em filosofia, professor do Insper e curador do Fronteiras do Pensamento


Folha de S. Paulo

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